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terça-feira, 15 de julho de 2014

Entenda por que o vagão feminino não é a solução



Por Jarid Arraes,
Com a finalidade de resolver a questão da violência sexual no metrô de São Paulo, no último dia 4 deste mês foi aprovado na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) o Projeto de Lei 175/2013, que visa criar um vagão exclusivo para o uso feminino. Embora uma grande parte dos movimentos de mulheres tenham se manifestado de modo contrário a essa medida, ainda há muitas pessoas sem entender o quão negativas e perigosas as consequências desse vagão podem ser.

São Paulo não é a primeira cidade a segregar mulheres em um vagão, na ilusão de que o abuso sexual diminuirá. Outras cidades do Brasil, como o Rio de Janeiro, já contam com essa separação entre sexos. Por isso é necessário agirmos com urgência, antes que tal medida se espalhe por mais cidades e um falso paliativo ganhe ainda mais força. Para compreender melhor que tipo de ameaça se trata, vale a pena conferir alguns dos argumentos contrários ao vagão feminino:

1) O vagão feminino promove a segregação social

A história da humanidade e vários países da contemporaneidade nos chamam atenção para um fato: segregar os sexos, dividir o mundo entre locais para homens e locais para mulheres e reduzir o contato entre os gêneros não faz com que a violência acabe. Em países onde mulheres não podem sequer sentar-se num mesmo cômodo de restaurante que homens, os números de estupro continuam sendo altíssimos. A intenção de separar pessoas para protegê-las é catastroficamente falha e qualquer um que entenda minimamente sobre a mente humana pode explicar sobre as consequências dessa segregação: as relações sociais, sexuais e afetivas são prejudicadas, a capacidade empática é diminuída e torna-se cada vez mais difícil enxergar as mulheres como indivíduos similares aos homens, o que gera prejuízos nas esferas sociais e profissionais.

As pessoas devem conviver umas com as outras e precisam encarar as diferenças, aprender a lidar com os limites de espaço e privacidade e colocar em prática o respeito. Separar pessoas como água e óleo reafirma uma suposta diferença que, até hoje, serviu muito mais para justificar machismo, abusos e violência do que para proteger.

2) Naturaliza a violência e a culpabilização da vítima

“Se existe um vagão só para mulheres, o que você foi fazer no vagão misto? É lógico que algo ia te acontecer”; essa foi a sentença ouvida por Silvia Bezerra, professora de 32 anos, quando foi chamar um segurança para contar da “encoxada” que havia sofrido no metrô do Rio de Janeiro. Essa reação é, infelizmente, muito comum e se torna ainda mais provável de acontecer a medida que mais e mais metrôs adotam a política do vagão feminino.

O vagão exclusivo se torna quase uma obrigatoriedade, não porque há uma lei que force as mulheres a usarem somente o vagão cor-de-rosa, mas porque culturalmente se estabelece um raciocínio maniqueísta e misógino, compreendendo que a mulher que deseja se proteger não entrará em vagões mistos. Afinal, se ela não se importou em estar entre homens é porque não se importaria também em ser assediada – pensam os machistas. Por isso, o vagão exclusivo naturaliza a violência, fazendo com que o problema aparente ser menos grave e falsamente simples de ser evitado. A realidade, no entanto, é de que as mulheres passam a receber uma carga ainda maior de responsabilidade pelos abusos sofridos por elas mesmas.

3) Marginaliza as pessoas trans

O vagão exclusivo para mulheres é uma extensão do que já acontece nos banheiros públicos. Pessoas trans, sejam elas travestis, transexuais ou transgênero, já enfrentam uma enorme dificuldade para usar o banheiro devido à transfobia e violência existentes em nossa cultura. Uma travesti que tenta usar o banheiro feminino, por exemplo, pode passar por um vexame imenso ao ser escrachada e exposta publicamente por pessoas que não consideram sua presença adequada. Já no banheiro masculino, essa mesma travesti sofrerá, no mínimo, com deboches e hostilizações verbais, podendo até mesmo ser espancada e estuprada pelos homens que não toleram sua existência.

De modo similar, se a travesti entrar no vagão feminino para fugir da hostilização do vagão misto, poderá ser expulsa e constragida. Por outro lado, assim como outras pessoas do gênero feminino, entrar no vagão misto implicará na naturalização da violência que venha a sofrer. A proposta da separação também não contempla os homens trans, que também estão sujeitos a abusos, mas podem ser intimidados e constrangidos se utilizarem o vagão feminino.

Pessoas trans estão em severa vulnerabilidade social e já lidam com altos níveis de abusos diários. Para elas, o vagão para mulheres será somente mais uma face dessa exclusão.

4) Não traz mudanças efetivas na cultura

O vagão feminino não efetiva nenhuma mudança positiva em nossa cultura machista, pois não desafia os valores distorcidos e misóginos vigentes na sociedade – pelo contrário, os reforça e os naturaliza. Portanto, é um grande engano achar que a presença do vagão exclusivo diminuirá os casos de violência sexual no metrô. Esse vagão não funciona porque existem muitas mulheres nas cidades, que não cabem em um espaço limitador; não funciona porque não traz consigo qualquer esforço para que combater e eliminar o problema devidamente; não funciona porque não age onde o foco do problema está: na parcela de homens que “encoxam”, abusam e violetam.

Felizmente para as usuárias do metrô, há alternativas que podem oferecer resultados mais otimistas e duradouros:

1) Proporcionar o acolhimento e facilitar as denúncias

Os metrôs de todo o país, assim como as estações de ônibus, rodoviárias e aeroportos, precisam contar com atendimento especializado voltado para mulheres que sofrem violência, tanto em trajetos rotineiros quanto em viagens, sejam curtas ou longas. Para que esses crimes sejam devidamente apurados, registrados e punidos, é preciso que esses locais contem com acolhimento eficiente e ambientes preparados para lidar com essas questões. Já é extremamente difícil para a mulher “apalpada” reunir coragem para quebrar o silêncio e procurar um segurança ou responsável; isso se torna ainda pior quando esse funcionário não está capacitado para ouvir, acolher e buscar resolver o problema. Com meios direcionados para esse tipo de atendimento, é mais provável que as mulheres sintam-se à vontade para buscar ajuda e denunciar os crimes.

2) Reforçar a fiscalização

Para os casos de violência sexual, seja ela uma “encoxada” ou uma penetração forçada, é preciso que o metrô utilize a tecnologia disponível atualmente no Brasil. As câmeras precisam funcionar em posicionamento privilegiado, para que todas as áreas do vagão sejam monitoradas. Mais fundamental ainda é poder contar com a apuração dessas gravações, sem má vontade dos responsáveis, que precisam considerar a denúncia com sua devida importância.

Nossa sociedade é bastante paranóica quando o assunto é assalto, mas não parece se importar tanto assim com a violência sexual. Essa mentalidade precisa mudar, não para promover pânico e trazer audiência aos programas televisivos sensacionalistas, mas para que as mulheres possam se sentir um pouco mais amparadas pelos mecanismos de segurança. É possível repensar o papel dos seguranças, onde estão localizados, se estão acessíveis, se estão preparados para atender a essas demandas e se os funcionários do metrô estarão em prontidão para prevenir, interromper e identificar o abuso sexual.

3) Realizar campanhas educativas sobre a violência sexual

O governo e as empresas de transporte precisam somar suas forças para lançar e manter regularmente campanhas que ensinem à população o que é a violência sexual e como combatê-la. É possível e necessário ensinar às pessoas que a violência sexual é gerada pelo machismo e que ele deve ser combatido. Dizer “não estupre” já seria um avanço, tendo em vista que em pleno ano de 2014 nossa cultura ainda prefere ensinar mulheres a não “se exporem”. Também é preciso orientar a respeito do crime de estupro, que não dependente da penetração para que seja enquadrado como tal. Há muito conteúdo para explicar, mas os governantes e empresários devem mostrar que se importam e se comprometem.

Mas tudo isso ainda não seria o suficiente; é preciso valorizar e consultar os trabalhos dos movimentos e instituições feministas para realizar campanhas que sejam realmente educativas.

4) Quebrar o silêncio

Lamentavelmente, muitas pessoas presenciam esses abusos e mesmo assim se mantêm caladas. Muitas agem assim por medo, outras porque não se sentem capacitadas para tomar alguma atitude; mas ainda há aquelas que simplesmente não enxergam a gravidade da violência. Para todos os brasileiros, é preciso que haja encorajamento e campanhas pela quebra do silêncio. Para que auxiliem as vítimas e busquem intervir em situações de violência, seja criando uma situação de exposição do agressor, quando se tem certeza de que não está armado, ou o denunciando às autoridades responsáveis. Unindo as campanhas de conscientização, a promoção da empatia e do engajamento social e as campanhas de educação contra o machismo, muitos resultados positivos e efetivos seriam colhidos. Esse tipo de política, sim, gera mudança social duradoura.

E não acaba por aqui…

Por fim, é importante lembrar que a discussão não se limita aos tópicos apresentados. O debate é extenso e, como tudo que envolve valores culturais, bastante complexo. Mas com bastante didática e luta, existem alternativas para a dignidade feminina no Brasil e no mundo. Chegamos até aqui com muitas conquistas e precisamos caminhar na direção de muitas outras. Abra-se ao debate, reflita e busque mais informações.

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