Por Douglas Belchior,
No início da noite desta terça feira (20), o juiz da 17ª Vara da Fazenda Federal do Rio de Janeiro, Eugênio Rosa de Araújo, reviu a sentença em que havia declarado que candomblé e umbanda não eram religiões e sim de cultos. A mudança foi divulgada em nota, pela assessoria de imprensa da Justiça Federal do Rio de Janeiro. No documento o juiz admite o erro e modifica parte do conteúdo da sentença. Ele afirma ainda que “o forte apoio dado pela mídia e pela sociedade civil, demonstra, por si só, e de forma inquestionável, a crença no culto de tais religiões”.
Eugênio Rosa foi alvo de duras críticas por sua postura que, para os movimentos de defesa da cultura africana, reafirmava estereótipos, preconceitos e racismo. Na primeira sentença o magistrado chegou ao absurdo de afirmar que para ser considerada religião, uma doutrina teria que seguir um livro-base, como o Corão ou a Bíblia, por exemplo, o que não acontece, segundo ele, com as crenças de matrizes africanas.
Apesar da alteração da sentença, o Juiz reiterou a negativa dada na ação movida pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro que pedia retirada do YouTube de 15 vídeos considerados ofensivos à umbanda e ao candomblé. Na mesma nota o juiz federal informou que “manteve o indeferimento da liminar pela retirada dos vídeos no Google postados pela Igreja Universal e esclarece que sua decisão teve como fundamento a liberdade de expressão e de reunião”.
Ou seja, a liberdade de expressão a serviço da intolerância religiosa, do preconceito e do racismo, logo, da violência.
Shirlene Marques, editora do Blog Postagens Negras, já havia elaborado uma ótima reflexão sobre o assunto no texto que replico abaixo.
É papel do Judiciário analisar a validade e existência da religião?
Por Shirlene Marques
Uma das bases do Direito para a solução da lide (conflito) é a atitude de uma “neutralidade” do juiz, para que a mais correta interpretação da lei seja dada. Primeiro ele deve observar o que diz a nossa Constituição, os pactos e acordos. Quando me deparei com a divulgação de que o juiz Eugênio Rosa de Araújo da 17.ª Vara Federal do Rio de Janeiro havia posto em sua sentença que o candomblé e a umbanda não são religiões, fiquei refletindo sobre as bases utilizadas pelo magistrado para tal fundamentação.
Com certeza, não fez uso da legislação, que orienta pelo direito à diversidade de religiões. Ao contrário, foi buscar desqualificar as religiões, partindo de pressupostos tão frágeis. Também não buscou leituras mais aprofundadas existentes na sociologia da religião.
E o pior, o papel do magistrado nesta decisão foi além do pedido jurídico. Havia uma petição do povo negro, via Associação Nacional de Mídia Afro (ANMA) para que o Ministério Público Federal (MPF) fizesse uma intervenção para a retirada de vídeos que ofendiam e faziam ataques levianos sobre as religiões afro-brasileiras. O Google não aceitou o pedido para tal retirada e o MPF então recorreu junto à Justiça Federal, para que a mesma implementasse uma decisão jurídica,visando a retirada do conteúdo que fere os postulados existentes no país, previstos na Constituição Federal.
O pedido exigia a aplicação da lei, da justiça na luta contra a intolerância religiosa e o racismo. O que aconteceu foi o contrário, o juiz Eugênio Araújo, negou o pedido da ANMA e fundamentou afirmando que tais religiões afro-brasileiras não seriam religiões. Um dos argumentos do juiz para desqualificar as referidas religiões foi a inexistência de um livro “divino” a ser seguido. Tal argumento mostra que o espaço do juiz ao definir o que é ou não religião ultrapassou os limites técnicos do fazer profissional. Pois, cabe à tantas ciências sociais, como a Sociologia das Religiões e a Filosofia tais debates e análises. Debates estes, que definem claramente a validade e a vivacidade do candomblé e da umbanda como religiões.
Quando a Justiça se presta a um ato como estes, pratica-se um retrocesso, não apenas jurídico mas social. Pratica-se um atentado contra o povo (negro) que sofre opressão há séculos dentro deste Brasil. Pratica-se um ato de ignorância sobre tudo o que já se produziu nas Academias deste mundo. Pratica-se a intolerância e a falta de desejo de construir um país mais justo, mais democrático.
Sabendo de decisão jurídica, lembrei da figura ímpar e filha de Iansã (um dos orixás cultuados no candomblé), a desembargora Luislinda Valois. Chegaram a minha mente nomes como a talentosa Maria Bethânia (também filha de Iansã) e de Mãe Stella de Oxóssi ( que recebeu o título de doutora honoris causa na Bahia). Todas elas são mulheres de santo, mulheres que lutam cotidianamente contra tal intolerância praticada e sentida.
Precisamos avançar e não retroceder. Que a justiça seja feita.
Fonte: Negrobelchior
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