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segunda-feira, 19 de maio de 2014

Hora de ensinar boas maneiras aos “grandes” poderes


Estados Unidos já não são capazes de impor sua ordem. Mas como evitar que seu declínio resulte num mundo caótico?

Por Slavoj Zizek | Tradução: Marília Arantes, em Outras Palavras
Conhecer uma sociedade não significa apenas conhecer as suas regras explícitas. É preciso saber como aplicá-las: quando utilizá-las, quando violá-las, quando negar uma chance que nos é oferecida, e quando somos obrigados necessariamente a fazer algo enquanto pretendemos fazê-lo por livre e espontânea opção. Considere o paradoxo, no caso, das propostas feitas para que sejam recusadas. Quando sou convidado para jantar em um restaurante por um tio rico, ambos sabemos que é ele quem vai pagar a conta, embora eu deva insistir de leve que podemos dividir – imagine a minha surpresa caso meu tio de repente diga: “está bem, então, pague a conta você!”

Aconteceu um problema similar durante os caóticos anos pós-soviéticos sob governo Yeltsin na Rússia. Embora as regras legais fossem conhecidas e, em boa parte, idênticas às da União Soviética, uma complexa rede de regras implícitas, não-escritas – as que sustentavam todo o edifício social -, se desintegraram. Na União Soviética, se você precisasse de um tratamento hospitalar melhor, assim como um apartamento melhor, se tivesse alguma reclamação contra as autoridades, estivesse sendo processado ou quisesse seus filhos admitidos em uma escola de ponta, era preciso saber das regras implícitas.

Você precisava compreender a quem deveria se dirigir ou persuadir, e o quê deveria ou não fazer. Após o colapso do poder soviético, um dos maiores aspectos a mudar no cotidiano das pessoas comuns foi que estas regras não-ditas tornaram-se seriamente obscuras. As pessoas simplesmente não sabiam como reagir, como se referir às regulamentações oficiais explícitas, o que deveria ser ignorado e até onde a persuasão funcionaria. (Uma das funções do crime organizado era prover um tipo de Ersatz – um substituto -, da legalidade. Se você fosse o dono de um pequeno negócio e um cliente lhe devesse dinheiro, você deveria procurar respaldo de um mafioso, que cuidaria do problema, já que o sistema legal do Estado era ineficiente.) A estabilização da sociedade sob o reinado de Putin só se deu, em grande parte, por causa da transparência no estabelecimento recente de regras não-escritas. Agora, novamente, a maioria das pessoas pode compreender a complexa teia de interações sociais.

Na política internacional, ainda não atingimos este estágio. Voltando aos anos 90, um pacto silencioso regulamentava as relações entre a Rússia e as grandes potências Ocidentais. Os Estados do Ocidente tratavam a Rússia como um grande poder, sob a condição de que ela não agisse enquanto tal. Mas o que acontece quando a pessoa a quem se fez uma proposta-feita-para-se-recusar, resolve aceitá-la? E se a Rússia começa a agir enquanto grande potência? Uma situação como esta é de fato catastrófica, por ameaçar toda a teia de relações existentes – assim como aconteceu há cinco anos, na Geórgia. Cansada de ser apenas tratada como superpotência, a Rússia passou a atuar enquanto uma.

Como isso aconteceu? O “Século Americano” acabou e nós entramos em um período em que passaram a se formar múltiplos centros no capitalismo global. Nos Estados Unidos, Europa, China e talvez América Latina, também, os sistemas capitalistas se desenvolveram com características específicas; os EUA defendem o capitalismo neoliberal, a Europa, o que restou do Estado de bem-estar social, a China, um capitalismo autoritário e a América Latina, o capitalismo populista. Desde que a tentativa dos Estados Unidos de se imporem enquanto superpotência hegemônica – polícia do mundo – faliu, existe a necessidade de se estabelecer novas regras para interação entre estes centros locais, conforme o que diz respeito a seus interesses divergentes.

É por isto que os nossos tempos são potencialmente mais perigosos do que parecem. Durante a Guerra Fria, as regras para o comportamento internacional eram claras, e garantidas pela loucura – da destruição mútua assegurada– pelas superpotências. Quando a União Soviética violou as tais regras não-escritas ao invadir o Afeganistão, ela pagou seriamente pela infração. A Guerra no Afeganistão foi o começo de seu próprio fim. Atualmente, velhas e novas superpotências estão se testando umas às outras, tentando impor suas próprias versões das regras globais, experimentando abordagens aos mais próximos – que, é claro, são outras, nações e estados menores.

Karl Popper certa vez defendeu o exame científico de hipóteses, afirmando que assim permitimos que nossas hipóteses morram, em vez de morrermos nós mesmos. Mas, nos testes realizados hoje em dia, as pequenas nações ganham mais mortos e feridos do que as grandes – primeiro foi a Geórgia, agora a Ucrânia. Embora os argumentos oficiais sejam altamente moralistas, defendam os direitos humanos e a liberdade, a natureza do jogo é clara. Os acontecimentos na Ucrânia parecem algo como a “Crise da Geórgia – Parte II” – o próximo estágio da luta por controle em um mundo não-regulamentado, multipolarizado.

Sem dúvida, é hora de ensinarmos a estas superpotências, velhas e os novas, algumas boas-maneiras [regras de conduta], mas quem fará isto? Obviamente, apenas uma entidade transnacional poderia mediar isto – há mais de 200 anos, Immanuel Kant enxergou a necessidade de uma ordem legal internacional que fosse capaz de permear o apogeu das sociedades globalizadas. Em seu projeto pela paz perpétua, escreveu: “Desde que uma comunidade mais estreita e mais ampla entre povos do mundo tenha se desenvolvido a ponto que a violação dos direitos em uma localidade do mundo seja sentido nas demais, a ideia de que exista uma lei mundial de cidadania não seria mero devaneio ou noção exagerada.”

Isto, no entanto, nos leva ao que é discutivelmente a “principal contradição” da nova ordem mundial (se ainda pudermos utilizar o velho termo maoísta): a impossibilidade de criarmos uma ordem política mundial que seja capaz de corresponder com a economia capitalista globalizada.

Mas e se, por razões estruturais, e não somente devido a limitações empíricas, não seja possível existir uma democracia amplamente difundida ou um governo representativo mundial? E se a economia do mercado global não puder ser organizada diretamente como uma democracia liberal, global com eleições em nível mundial?

Na era de globalização, estamos pagando o preço desta “principal contradição”. Na política, antigas fixações, em particular, questões substancialmente étnicas, religiosas e de identidade cultural voltaram como vingança. Nosso dilema é definido por sua tensão: à livre circulação global de commodities seguem crescentes separações na esfera social. Desde a queda do muro de Berlim e o apogeu do mercado global, novos muros começaram a emergir por todas as partes, segregando pessoas e suas culturas. Talvez a sobrevivência crucial da humanidade dependa da resolução desta tensão.

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