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terça-feira, 21 de outubro de 2014

A solidão da mulher negra e o racismo cotidiano

Eu estava ali diboa quando resolvi buscar exemplos (ainda mais) próximos de um fenômeno que persiste, pouco discutido e, talvez, cada dia mais forte, que é o da preterição da mulher negra. Ou o “racismo sem racistas, seção: mulher” (fique a vontade pra nomeá-lo como melhor lhe aprouver).

Foi um trabalho simples, executável em dez ou quinze minutos, sem demanda de maiores esforços. Digno de quem anda evitando a fadiga, como eu. O trabalho consistiu, basicamente, em abrir a minha lista de contatos no whatsapp e quantificar os meus familiares e amigos com “estado civil” conhecido. Encontrei 21 homens comprometidos dos quais apenas 3 tinham esposas ou namoradas negras.

Informo que meu foco primordial eram os homens negros – porque sou capaz de apostar um rim como a eleita será branca a cada vez que vejo boa parte deles comprometida -, mas acabei por expandir a observação e contabilizando também os homens brancos e as mulheres lésbicas. Entre os homens, contei 9 negros e 12 brancos, já entre as mulheres lésbicas (3), todas eram brancas, assim como suas namoradas.

Talvez eu não tenha ficado satisfeita com o resultado e aí fui dar uma olhada no instagram. Usei os mesmos critérios (Tem namorada,companheira ou esposa? Quantas, entre elas, são negras?). Ali eu contabilizei outros 20 homens (excluídos os que existem em comum com a lista do whatsapp), dos quais apenas 2 tinham namorada/esposa negras.

Talvez eu novamente não tenha ficado satisfeita com o resultado, e, percebendo que eu seguia poucos famosos no instagram, resolvi dar um breve passeio pelas contas de algumas “celebridades”, pelo bem da observação. Dessa vez observei apenas os homens negros – cantores pop, atores, atletas. Eu gostaria que vocês chutassem o resultado dessa busca. Podia ter um, pra fechar certinho minha curva descendente, mas não. Dez, dos dez homens negros pesquisados, namoram ou estão casados com mulheres brancas.


Conversando com uma amiga a respeito disso, ela se perguntou “será que nenhum desses caras olha pros lados na turma de amigos e se pergunta “por que será que só tem branca aqui?” Eu penso que não. Não porque, sob uma lógica própria, todos ali estão obedecendo a um padrão. Os meus familiares e amigos no Whatsapp e noInstagram não me deixam mentir. Será a cor das parceiras afetivas uma escolha aleatória? Coisa apenas do coração? Resposta: não. NÃO é possível creditar apenas a um gosto pessoal a escolha por esposas e namoradas brancas.

Meus prezados, eu não quero dizer que vocês não têm direito a ter um gosto pessoal.

Eu estou dizendo que até a sua pessoal e intransferível preferência é moldada socialmente. Estou dizendo que, se eu te pedir pra fechar os olhos e imaginar uma mulher, essa mulher formada em sua mente será branca. Que se você vir uma mulher branca bonita, ela será apenas “bonita”, mas se quem você visualizar for uma mulher negra bonita, então ela será uma “negra bonita”. É que desde criança você foi acostumado a pensar no branco como neutro.

Os bonecos, as bonecas, os personagens dos desenhos que assistia, os apresentadores dos seus programas preferidos (de todas as idades), as propagandas de brinquedo, de carro, de margarina, de leite, de sabão, de sapato, de produtos de beleza (insira qualquer produto apto a ser objeto de campanha publicitária aqui)… Lembre também da sua paixão de infância, lembre das mocinhas dos filmes e das novelas.E lembre das namoradas que apresentou para seus pais. O que eu estou dizendo, finalmente, é que reduzir sua escolha ao mero campo do gosto pessoal, ignorando a construção social que o fez conceber o branco como o bonito, é, para dizer o mínimo, inocente. É esquecer desse caráter estrutural que o racismo tem.


(E antes que você venha enumerar os papéis de destaque que as mulheres negras vem ganhando na mídia, dê uma olhada no material que i)foi produzido há 30, 40 anos; ii) vem sendo produzido recentemente e volte aqui pra gente conversar um pouco sobre humor, sexualidade e reforço de estereótipos)

Eu sei que não estou dizendo nada novo nesta nota.

Apesar disso, é esse o exato ponto da conversa em que nos classificam como paranóicas ou dizem que “tudo agora é racismo”. Esse discurso da paranóia é emblemático e encontra guarida no mecanismo peculiar do racismo brasileiro, que consiste em transformar a vítima em culpado. Porque o racismo, na realidade, estaria na cabeça das pessoas que o apontam, que o veiculam como um problema a ser enfrentado. Dizer que “tudo agora é racismo” é demonstrar, no mínimo, desinteresse pela constatação de que a história desse país está fundada em racismo, e é justamente por não haver nada novo em objetificar mulheres negras e tratá-las como mulheres de segunda categoria que vocês não podem fingir que é só uma paranóia.


Racista não é só a jovem branca na TV chamando um jogador de futebol de macaco. Racistas somos nós, a cada vez que negamos espaço a discussões como essa ao argumento de que isto está superado, ou não é importante. Eu, aliás, queria ter poder pra observar o dia-a-dia de cada um daqueles que apedrejou a casa da torcedora do Grêmio, só para vê-los dizendo – no conforto de seus lares livres de preconceito – que um negrinho “se deu bem” ao vê-lo passear com sua namorada branca, que aquela menina black power é muito bonita mas deveria pentear o cabelo, que políticas públicas de cotas raciais são racismo reverso, entre tantas outras manifestações de racismo nossas de cada dia, a provar por definitivo o caráter difuso e estrutural da segregação racial em nosso país e revirando seus bolsos de pessoas de bem para encontrar onde é mesmo que o seu racismo se esconde.

Como não posso ir até lá, sigo lhes lembrando, daqui mesmo, quão hipócrita é vestir sua camiseta de “Say no to racism” e continuar adotando a comodidade da postura “neutra” ao invisibilizar toda a sorte de discriminações que acontecem bem ao seu redor – e com as quais você contribui – para apenas compreender como racistas aqueles, bem longe de nós, que espancam, xingam ou oferecem bananas.

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