Por: Aline Matos,
Nas últimas semanas fui convidada a fazer formações (momentos de apropriação de conceitos e reflexões) para mulheres com o tema “O papel da mulher na sociedade”. Como o tema é muito amplo, optamos, eu e a parceira de trabalho, por conhecer as duas turmas, pois haveria 3, 4 encontros com cada uma delas, e sentir o que traziam como anseios, saberes e dali tocar em frente.
Eram turmas bem heterogêneas, com mulheres de diversas faixas etárias, escolaridade, experiências profissionais, raça/etnia bem como de diferentes territórios desta grande capital paulista.
Algumas levavam suas crianças ou porque não tinham com quem as deixasse ou simplesmente porque queriam estar presentes com elas. Sugeri às pessoas que me convidaram a criação de “uma caixa pedagógica” com a inclusão de bonec@s negr@s bem como de livros infantis que garantissem esses personagens. Percebi um silêncio que depois de confirmou como constrangimento.
No dia posterior, no qual haveria atividade, a equipe mostrou uma caixinha com alguns brinquedos doados por ela mesma. Achei legal e sublinhei a sugestão, mais uma vez, da inclusão de bonecos negr@s e d@s livros. Quando cheguei em casa, havia recebido uma mensagem, enquanto estava a caminho, de que não havia sido previsto e assim seria não seria possível atender. Não entendi. “Repliquei” que realmente não percebemos todas as necessidades no momento inicial, mas era possível alcançar parcerias. Novo silêncio. Percebi alteração brusca na forma em que passei a ser recebida pela equipe. Escrevi à uma integrante com quem tinha laços de amizades e perguntei se havia acontecido algum constrangimento com a sugestão e li “com a sugestão propriamente dita não”.
Enfim, passei a levar alguns brinquedos de minha filha para emprestar às crianças. Até onde pude participar, as crianças que acompanhavam suas mães eram negras.
Continuei a realizar as formações e em uma delas, nos últimos cinco minutos, houve uma colocação precipitada, ao meu ver, a respeito de Patrícia Moreira, uma das pessoas que ofendeu racialmente o goleiro Aranha, ser realmente a única culpada. Isso ocorreu justamente na semana em que a mídia, evidentemente que isto ocorreria, investiu maciçamente na vitimização de Patrícia para tentar apagar toda a repercussão que o caso teve, no sentido de alcance nunca visto anteriormente. Há inquérito policial em andamento, Patrícia foi a primeira a ser identificada, outros também devem o ser; por insistir em cantos de guerra racistas o Grêmio foi penalizado com a expulsão da Copa do Brasil; Aranha passa a ser merecidamente símbolo da voz da população negra que já não aguenta mais as ofensas banais, as piadas racistas, o genocídio histórico de sua juventude.
Cinco últimos minutos… passamos a ouvir justificações racistas e Aranha saiu como culpado por ter sido ofendido e ainda ganhou o adjetivo de racista. Enfim, nosso papel como formadoras é o de questionar os preconceitos e discriminações que atacam a dignidade humana e a bola do racismo foi cantada, quer dizer, chutada. Seria de toda forma, não tenho dúvida, porque somos brasileir@s e o racismo está entranhado em nosso cotidiano. A melhor forma de combate é o reconhecimento e reflexão e entramos nesse jogo querendo ganhar de goleada contra o racismo.
Formação preparada a quatro mãos. Sou chamada, em separado da minha companheira de trabalho, pela representante da equipe e ouço frases desencontradas. Tenho, sobretudo, a imagem de alguém em descontrole, cuspindo autoritarismo e ódio. Talvez, em meio às falas desencontradas, a que resume é: “aqui não falamos sobre isso e sim sobre outras discriminações”. Não fui ouvida e percebi que seria inútil insistir em qualquer “conversa” com aquela “interlocutora”.
Não aceitei o “convite” de me retirar e toquei as atividades, embora com forte censura no ar, a temática do racismo foi enfrentada e considero que semeamos, provocamos o rompimento com a ideologia da superioridade racial branca. Quando haverá colheita (haverá?), não sei. Quando haverá o rompimento (haverá?), não sei, mas posso afirmar que vi expressões de mulheres sendo acolhidas em suas dores quando narraram o racismo e libertar a voz, gritar a dor, é um exercício empoderador. Vi que o grupo se abriu para contar mais dores e também alegrias. A alegria apareceu, curiosamente após a dor ser libertada.
E passei a refletir mais ainda, processo no qual estou e ficarei por um bom tempo, sobre a ligação entre bonec@s negr@s, o caso Aranha, a vitimização de Patrícia Moreira e o “papel da mulher na sociedade moderna”. E tem tudo a ver.
Primeiramente, racismo não é assunto só de quem é negr@, indígena, cigan@, é assunto de tod@s nós. A ideologia da superioridade racial, que sustenta o racismo, prejudica a saúde emocional relações humanas, assim como o machismo. Estamos doentes, Além de que devemos nos lembrar sempre do efeito “teia”, junção de fatores, por exemplo, a mulher negra tende a enfrentar o machismo e o racismo ao mesmo tempo.
Segundo, vi um ponto positivo nesse “projeto”: as mulheres podem levar suas crianças. É um exemplo de respeito à dignidade da mulher mãe e das crianças e adolescentes. Se lá as crianças puderem encontrar brinquedos que represente a todas, o avanço seria muito bonito, pois é impossível negar que crianças se desenvolvem ao brincar e na relação com os brinquedos repetem o que vêem, mas sobretudo criam, amam, pois estão menos adoentadas do que nós.
Fiz uma atividade há muito tempo, uma contação de história em que a personagem principal era negra. Uma das crianças não a suportou e tive que proteger para não ser destruída. Foi um aprendizado difícil, acho mais para mim do que com a criança “de mal com a boneca negra”, pois não sabia ao certo como fazer. Só que na outra contação de história, com a mesma boneca e criança, algo muito importante mudou o cenário. A criança se apaixonou pela boneca, acarinhava-a… Só as duas saberiam contar (risos) sobre a redenção que ali houve. A possibilidade de amor e cura de uma criança é bem maior do que a nossa.
Tudo isso #juntoemisturado# e mais ações contribuiriam, sem dúvida, para que alguém não visse como piada chamar o outro de “macaco” ou “macaca” ou percebesse o crime a existência de hinos que exaltassem o ódio, o racismo, o machismo. Contribuiria também para que a Lei 10639 fosse mais conhecida, ampliada a todos os espaços de educação (formais e informais) e garantida, poderia contribuir para casos como o que Patrícia Moreira é apontada como ofensora racial despertasse mais o sentimento de que precisamos eliminar o racismo e não procurar um meio para absolver a ela – e todos os demais que assim praticarem (caso de repercussão mundial, lembre-se)- e condenar quem realmente foi vítima. Precisamos nos reeducar e ponto.
Racismo, machismo, maternidade, direito a brincar em condições de igualdade, equipe do Projeto querido mencionado, tudo isso tem a ver com o “papel da mulher na sociedade moderna” e de todas as mulheres, querid@s, brancas, negras, indígenas, amarelas porque tem a ver com o respeito às diferenças, intimamente ligado ao direito à igualdade que é o ideal a ser alcançado pelo Projeto que coordenam.
Sugestões:
Imagem: “O xadrez das cores” de Midmix e Marco Schiavon
Assista também “O CIRCO- Mulher, mãe e negra”
Professor Kabengele Munanga fala sobre o Genocídio da Juventude Negra e o Racismo:
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