Imagem da apresentação da cantora norte-americana Beyoncé no prêmio Video Music Awards 2014 da MTV.
Texto de Rebecca Traister. Tradução de Bia Cardoso. Publicado originalmente com o título: ‘Beyonce’s VMA Performance Was the Feminist Moment I’ve Been Waiting For’ no site New Republic em 25/08/2014.
Testemunhei uma das mais poderosas mensagens da cultura pop na minha vida.
Não sou mais tão nova e faz um tempo desde que assisti um Video Music Awards (premiação da MTV norte-americana). Eu não estou dizendo que a última vez em que sintonizei o canal no dia da premiação foi para ver Madonna sensualizando no palco em um vestido de noiva sintético, mas talvez tenha se passado uma década desde então.
Na manhã de segunda-feira, acordei com imagens de Beyoncé numa pose forte e dramática — vestida como a bola de discoteca mais poderosa do mundo — em frente a palavra “FEMINISTA” e me senti tão alegre como quando era uma criança. Ou melhor, uma criança feliz num universo muito mais sensacional da cultura pop do que essa criança estava anteriormente.
A cantora, que fará 33 anos na próxima semana, estava se apresentando no final da cerimônia anual de premiação, pouco antes de receber o prêmio Michael Jackson Video Vanguard. Ela cantou um medley de músicas que durou 16 minutos, e aos dez minutos, as palavras da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie ditas em sua palestra do TEDx Talk: “Todos Nós Devemos Ser Feministas”— que Beyoncé sampleou em sua música de 2013, “Flawless” — começaram a aparecer na tela do palco, enquanto a voz de Adichie as pronunciavam em voz alta.
“Nós ensinamos as meninas que elas não podem ser sujeitos sexuais da mesma maneira que os meninos são”, disse/leu Adichie. “Nós ensinamos as meninas a se diminuirem, para que se tornem pequenas. Dizemos para as meninas: “Você pode ter ambição, mas não muita. Você deve querer ser bem sucedida, mas não pode ter muito sucesso. Caso contrário, você vai ameaçar o homem”. E finalizou com a definição de Adichie do que é ser feminista: “uma pessoa que acredita na igualdade social, política e econômica entre os sexos”. Nesse momento, a figura cintilante de Beyoncé aparece deslizando no palco e se coloca em frente a palavra, toda iluminada.
Foi um momento genial, de uma beleza emocionante. Uma coisa que era, sim, tão trivial e embalada que realmente deveria, eu penso, não fazer sentido neste verão do mundo real, com a falta de encenação e brilho da brutalidade policial, dos direitos restritos e da horrível incivilidade. E, no entanto, apesar de sua superfluidade, lá estava a mais poderosa e certamente a mais polida mensagem da cultura pop em minha vida: de que a atenção para a desigualdade de gênero está viva, ressuscitada e que hoje é alimentada por uma energia ampla, mais diversa, mais jovem e bem mais brilhosa do que tem sido nas últimas quatro décadas.
E não, isso não quer dizer que Beyoncé Knowles é a única face do feminismo, ou que ela o representa satisfatoriamente melhor do que qualquer um dos outros mensageiros falhos do feminismo, seja no passado ou no presente. Porém, ela está enviando um sinal, e o fato desse sinal estar vindo de dentro da casa, da indústria do entretenimento — há também o fato de que Beyoncé é indiscutivelmente a pessoa mais poderosa dessa casa atualmente — significa que todos nós devemos prestar atenção a isso.
Nos dias de hoje, com o feminismo online imerso e agitado por divergências internas, é fácil esquecer que não muito tempo atrás, não havia feminismo online. Nós esquecemos que há pouco tempo atrás, algumas grandes organizações feministas estavam jogando com a ideia de abandonar o uso da palavra “feminismo”, não por causa de sua complicada história em relação a falta de inclusão das mulheres não-brancas, mas por ser um termo sem ligação com muitas mulheres jovens. Não muito tempo atrás, o periódico The Daily Beast estava lançando uma pesquisa proclamando que feminista é “uma palavra suja”.
Naquela noite de domingo, Beyoncé colocou a palavra sob as luzes e não usou simplesmente sua própria voz e corpo para defini-la, mas utilizou o trabalho de outra mulher como sua fonte. Isso é uma grande coisa. Recentemente, reli Backlash (2) — o livro que brilhantemente captura o sombrio ambiente cultural, político, pop e antifeminista em que cresci quando jovem — eu não pude deixar de pensar que a autora do livro, Susan Faludi, deve estar exausta. Embora ela sempre me pareceu uma espécie de Bisonho (ou Ió, personagem pessimista e melancólico da turma do Ursinho Pooh), talvez ela, como outros críticos — tanto a esquerda como a direita — estejam desapontados com as credenciais feministas de Beyoncé: o fato de que ela se apresenta, ou permite ser apresentada, de uma forma intensamente feminizada e sexualizada; que sua carreira é inerentemente capitalista por natureza; que “Drunk in Love”, realizada com o marido Jay-Z, inclui em sua letra o preocupante trecho: “Coma o bolo, Anna Mae”, uma referência aos abusos de Ike Turner a Tina Turner, uma das grandes precursoras de Beyoncé.
Para esse tipo de discussão, eu digo: sim, sem dúvidas, precisamos discutir sobre sexo de forma positiva (1), objetificação e a representação do poder erótico feminino! Preste atenção na maneira que aqueles a direita trabalham para pouco a pouco desmantelar as reivindicações de poder das mulheres, e nos progressistas que convincentemente questionam as inconsistências e contextos complicados a partir dos quais as mensagens de Beyoncé emergem; da mesma maneira devemos questionar as inconsistências e contextos complicados que tem surgido de outras vozes contemporâneas, populares e feministas, de Lena Dunham a Sheryl Sandberg passando por Tina Fey. A apresentação de Beyoncé no domingo a noite ocorreu num evento em que no ano passado Robin Thicke cuspiu e deu palmadas numa rebolante e lasciva Miley Cyrus. Até a definição inteligente e sucinta de Adichie sobre feminismo veio de uma TED Talk. Tanto no feminismo como no liberalismo, a lição irônica de “Quanto Mais Quente Melhor” ainda se aplica: Ninguém é perfeito. Nenhum indivíduo pode competentemente representar todas as pessoas que olham para ela (ou ele) para ver suas próprias experiências ou perspectivas refletidas. E isso é bom, e também é saudável destacar.
Porém, na análise não podemos perder totalmente o que resta de empolgante: o fato de que mais mulheres com grande visibilidade estão adotando a linguagem, ideias e o simbolismo do feminismo e, elas estão fazendo isso de seus lugares dentro da estrutura de poder, não apenas do lado de fora desse contexto. É esse posicionamento incomum que gera questões problemáticas, é claro — como pode um empresária multimilionária e apresentadora adequadamente dar voz às desigualdades enfrentadas pelas mulheres em todo o mundo? Mas, isso também é um sintoma de algo sem precedentes, as ainda-muito-poucas mas cada-vez-mais-numerosas mulheres que estão subindo alto nas estruturas que sempre foram apenas para os meninos, estão se recusando a colaborar com as forças externas que as teriam impedido de estar nessas estruturas há algumas poucas décadas atrás.
No site oficial da MTV, a manchete sobre a performance foi “Apresentação de Beyoncé no VMA 2014: Destemida, Feminista, Impecável, Momento Familiar”. No meu tempo, essas palavras nunca, jamais estariam relacionadas juntas.
Então, sim, é tudo fabricado para ser um grande palco-espetáculo, ela é rica e eles fazem parte de uma grande corporação, mas em um negócio em que a apresentação é o negócio, este foi transmitido para doze milhões de fãs ardorosos. E mostrou uma mulher negra como uma pessoa sexualmente confiante, com um talento acima do normal e como uma mulher de negócios poderosa, assim como uma adorável mãe com um parceiro no mesmo patamar, (“não acho que eu sou apenas sua pequena esposa”) um homem que a chamou de “a mais incrível artista viva”, quando ele lhe entregou sua pequena estatueta de astronauta enquanto carregava a filha dos dois.
Isso é o que uma mulher parece quando ela se define como uma feminista em 2014, ela diz o contrário dos obituários constantemente publicados, o movimento de mulheres não é apenas próspero, mas está em expansão. Curve-se.
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Notas
(1) O termo no texto original é “sex positivity”. Como muitos termos, “sex positivity” não tem uma tradução direta para o português e pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes. Como uma ideologia abrangente, “sex positivity” é simplesmente a ideia de que todas as relações sexuais, desde que sejam saudáveis e explicitamente consensuais, são uma coisa positiva ou afirmativa.
(2) FALUDI, Susan. Backlash. O contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Rio de Janeiro, Rocco, 2001.
Autora
Rebecca Traister é editora e escreve sobre política, gênero e mídia em diversos periódicos como: Elle, the Nation, Vogue, Glamour, New York Magazine, the New York Times, Nerve, entre outros. Também é autora do livro “Big Girls Don’t Cry: The Election that Changed Everything for American Women”. Twitter: @rtraister.
Fonte: Blogueiras Feministas.
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