FÁTIMA BERNARDES, MIGUEL FALABELLA, CARLINHOS BROWN E AS NEGAS
1. Naquela oportunidade da entrevista com a patricinha fanática por seu clube não havia nenhum negro para participar do debate sobre o episódio de racismo contra Aranha, já no programa em questão, além do percussionista baiano, a plateia estava cheia de outras “negas lindas” assentindo com movimentos de cabeça a todas as bobagens ditas pelos presentes.
2. Fátima, meio entusiasmada, a certa altura afirma: “elas [as negas] conquistaram isso porque se capacitaram”; alusão à meritocracia, isto é, se os negros quiserem e se dedicarem eles conquistarão seu espaço, simples assim. O preconceito estrutural não causaria nenhum óbice aos negros, deve ser isso o que pensa a apresentadora impensante.
3. As atrizes-cantoras negras se afirmam por meio dos seus cabelos, por sua alegria de viver, apesar das pessoas do mal, desde o alto de seus tamancos que pisam o chão da Cidade Alta carioca. Todas elas sustentaram até o término do programa matutino um sorriso largo e obediente.
4. O Falabella tem uma camareira negra que o inspirou a criar uma personagem da série: isso é amor.
5. Carlinhos Brown, ao menos no que diz respeito a uma abordagem estapafúrdia do problema racial no Brasil, é o substituto imediato do Edson Arantes do Nascimento.
6. Parece não haver saída.
QUEM MANDOU GOSTAR DOS POEMAS DA ELISA LUCINDA
Sempre achei os poemas da Elisa Lucinda muito chatos e algo afetados. A rigor nem são poemas, mas textos onde rimas aparecem como penduricalhos e que são ditos (com competência) por uma boa atriz, só isso. Ainda que esse preâmbulo não tenha a ver, ao menos aparentemente, com o assunto do meu comentário, me pareceu oportuno fazer a menção, pois ele dá um colorido especial tanto ao que vem a seguir, quanto ao seu desfecho.
Não faz muito a atriz postou em seu perfil no facebook um texto em defesa do ator e diretor Miguel Falabella e do tal seriado “Sexo e as negas” do qual Falabella é o idealizador. De forma bem sucinta pretendo comentar alguns tópicos do arrazoado de Elisa Lucinda. Então vejamos. A defesa da atriz invoca, em primeiro lugar, a necessidade de espaço para os atores negros (mas a que custo?) na TV e na teledramaturgia brasileiras. Até aí tudo bem, todos já estamos cansados de assistir atores negros fazendo papel de negro, como se não fossem talhados para outra coisa a não ser repetir os estereótipos que a sociedade espera deles. Esses atores fazem parte de uma espécie de “núcleo étnico”. Curioso é que o conceito de “étnico” não inclui atores brancos de ascendência europeia. Mas, paradoxalmente, diante desse quadro, Elisa sugere que os atores negros não podem desperdiçar qualquer oportunidade de trabalho, inclusive porque, segundo o adágio popular que serve de base ao seu raciocínio, neste caso poderíamos suspirar algo do tipo “dos males o menor”. Como se os negros que hoje decoram o televisivo “Esquenta” estivessem em situação melhor do que as remotas mulatas do Sargentelli.
Mas pior do que essa posição colaboracionista de Elisa Lucinda é sua justificativa para tolerarmos Falabella. Elisa diz que a mente do Falabella é suburbana ou simpática ao imaginário desse povo alegre, isto é, que ele teria ofeeling para falar da comunidade e que, além disso, sempre escalou atores negros em suas produções e projetos. Resta saber que tipo de representações esses atores negros encarnaram ou ainda encarnam? Por isto, tais fatos não significam que este cidadão não traga em seu coração esteticamente suburbano concepções preconceituosas, racistas e misóginas, afinal, o racismo e o machismo também estão, sim, nas comunidades. A cor de pele no Brasil faz as vezes de um patrimônio (assim como o gênero), onde quer que estivermos a branquitude e o masculino se impõem como bônus. Então, Miguel Falabella até pode ser sensível ao sabor suburbano, mas disso não se segue que não seja um reprodutor dos tradicionais preconceitos contra o negro e a mulher.
Em outro momento de sua postagem Elisa Lucinda repete o batido chavão da censura ao humor a propósito dos críticos do seriado “Sexo e as negas”, e propõe, em tom de manifesto, que devemos tirar o band aid dos traumas, insiste no valor do chiste como purgação dos medos, enfim, Elisa se utiliza de uma enfiada de clichês conciliatórios. Por outro lado, me pergunto: que humor covarde é esse que se compraz em colocar na alça de mira do seu riso reacionário aqueles que tradicionalmente, na escala social, são relegados à subalternidade ou à invisibilidade? Não é um humor em sentido forte – que subverte a convenção –, trata-se apenas de um humor classe média, votado a manter tudo e todos no mesmo lugar, um humor cujos alvos são sempre os mesmos: negros, homossexuais, gordos, pobres, mulheres, enfim, tudo isso que se transforma na zorra total patrocinada pelos filósofos do subúrbio cenográfico.
Por fim, uma referência confusa que não entendi. Elisa Lucinda parece colocar em pé de igualdade ou estabelece uma analogia desse movimento de repúdio ao seriado “Sexo e as negas” com o ato criminoso e isolado do sujeito (os jornais o descrevem como sendo “de cor parda”) que tentou atear fogo à casa da torcedora racista envolvida no episódio com o jogador Aranha. Elisa lembrou que isso remete às técnicas de combate da Ku Klux Klan. Nossa! Tal comparação é de uma leviandade sem cabimento. Com essa tirada Elisa Lucinda se comporta, ao menos para mim, como uma mucama da casa-grande defendendo o seu sinhozinho a qualquer custo. Ou seja, aqueles que querem a punição para quem chama um negro de “macaco”, aqueles que percebem o preconceito sugerido num título como “Sexo e as negas”, seriam, portanto, os verdadeiros intolerantes com o bom humor e o combateriam usando os métodos mais racistas e violentos de que temos notícia? Impressionante.
Minha cara, Elisa Lucinda, só tenho uma coisa a lhe dizer: por enquanto você é menos deletéria para o pensamento fazendo sua poesia. Ainda que sua poesia seja ruim, ao menos enquanto você se dedica a este afazer acaba atrapalhando menos.
EPÍLOGO
Em vista dos últimos acontecimentos referentes ao racismo no Brasil e devido a uma série de comentários adjacentes proferidos por muitos negros e brancos que acham que é melhor perdoar as ofensas – já que as ofensas, ao menos neste país, não visam ofender – e aceitar de bom grado uma visibilidade entre cafajeste e servil para os negros no espaço da mídia, pois isso seria melhor que nada, enfim, em vista de tudo isso, começo a ficar cada vez mais pessimista com o quadro.
Tanto que, outro dia, enquanto assistia a um documentário sobre Antonio Callado, reparei na fala de um contemporâneo do escritor que dizia que Callado era de uma geração que em relação às questões de fundo do Brasil (as desigualdades e contradições), lutou todas as lutas importantes de seu tempo e, entretanto, perdeu todas elas. Assim, em relação ao racismo e, naturalmente, dentro dos meus modestos limites de intervenção e discussão, não me espanta que, aos cinquenta e três anos da minha idade, eu comece a experimentar uma análoga sensação de fracasso. Talvez eu esteja sendo dramático. É verdade que muitos estão reagindo, ótimo. Por outro lado, não consigo esquecer que Kafka escreve, em algum lugar e frente a um vertiginoso pesadelo, que deve haver esperança, sim, mas não para nós. Só que no pesadelo do qual não consigo escapar, esse “nós” não parece reunir uma mínima cota que seja de brancos.
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Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013).
Fonte: sul21
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