Promessa do futebol brasileiro e cria da comunidade Para-Pedro, no Rio, o atacante que joga na Rússia se inspira em ativistas negros para contestar a violência policial em sua cidade
Criado
na Para-Pedro, uma favela no bairro de Irajá, zona norte do Rio, Lucas
Santos cortava o cabelo na mesma barbearia em que o mototaxista Kelvin
Cavalcante, de 17 anos, foi morto a tiros durante uma operação policial, em outubro. A Polícia Civil ainda não concluiu as investigações para determinar se as balas que atingiram o adolescente partiram de agentes do Estado. “Eu conhecia o Kelvin, um moleque do bem”, conta Lucas. “A morte dele me deixou revoltado. Poderia ter acontecido comigo ou com algum familiar. Dizem que é por engano,
mas morrem cada vez mais pessoas negras e pobres nas favelas. Cada vez
mais o Rio é um lugar medonho para se viver, apesar das belezas
naturais.”
Após o enterro de Kelvin, no cemitério de Irajá, moradores protestaram contra as ações violentas na região.
Um policial sacou um fuzil, deu tiros para o alto e tentou dispersar o
ato agredindo manifestantes. Ele foi afastado pela Polícia Militar por
descumprir o protocolo da corporação. Na época, pelas redes sociais,
Lucas Santos chegou a criticar o que chama de “espírito genocida” do governador Wilson Witzel (PSC).
“As atitudes que ele toma me fazem acreditar que se trata de uma
política de genocídio contra a população menos favorecida. Nenhuma
pessoa deve comemorar a morte de um ser humano, independentemente do que
estivesse fazendo. Entendo que é preciso ser duro com a criminalidade e
o tráfico, mas não consigo ficar feliz com o assassinato de alguém.
Essa postura do governador abala a confiança na polícia. Quem deveria proteger, na verdade, está matando muitos de nós.”
Depois de eleito, Witzel já declarou que policiais iriam “mirar na cabecinha” de suspeitos armados com fuzil e celebrou o desfecho de um sequestro
a ônibus na ponte Rio-Niterói, em agosto – o sequestrador acabou
abatido por um atirador de elite. Morando em Moscou desde setembro,
quando foi emprestado pelo Vasco ao CSKA, o atacante reafirma a intenção
de usar sua visibilidade
como jogador para questionar ações da polícia na favela. “Nunca tinha
vivido em um lugar tão seguro quanto a Rússia. Eu poderia muito bem
ficar calado, mas, pela minha raça e pela minha cor, não tenho o direito
de esquecer da minha origem.”
Em novembro, ele comemorou a soltura do DJ Rennan da Penha, condenado por associação ao tráfico na Vila Cruzeiro. “Existe uma tentativa de criminalização do funk.
Algumas letras são pesadas, mas retratam a realidade da favela”, diz o
jogador, que cita o próprio exemplo para discordar da condenação do
funkeiro devido à proximidade com traficantes. “Eu tenho amigos e até
familiares que foram pro lado do crime, infelizmente. Nem por isso
deixei de falar com eles. Quero que eles saiam dessa vida. E não é me
afastando ou virando a cara que vou convencê-los.” Parte da família de
Lucas Santos ainda mora na Para-Pedro. Embora se orgulhe das raízes,
vislumbra alcançar a estabilidade financeira com o futebol para tirá-la
da comunidade. “É desejo meu proporcionar uma situação de maior conforto
aos meus familiares. Mas se engana quem acha que favela é só cenário de violência. Lá tem muita coisa boa.”
Lucas também viu com bons olhos a libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, favorecido pela mesma decisão do STF
que livrou Rennan da Penha da prisão por vetar o cumprimento da pena
após condenação em segunda instância. Ele se considera de esquerda e,
apesar de ponderar sobre os escândalos de corrupção em governos do PT e o
processos contra Lula, avalia que as gestões petistas beneficiaram a população mais pobre.
“Não sigo cartilha nem bato palma para tudo que a esquerda faz. Mas a
gente, na favela, percebe a diferença entre um governo de direita e um
de esquerda. Para alguns, o Lula poderia ter feito mais. Só que ninguém
nega que ele deu dignidade aos negros e pobres. Já o atual Governo faz o
que pode pra dificultar nossa vida.”
Na última eleição, o
atacante formado pelo Vasco conta que, em concentrações com os juniores
do clube, tentou orientar colegas a não votar no presidente Jair
Bolsonaro. Ainda assim, não só entre companheiros da base, muitos atletas optaram pelo ultradireitista.
“A maioria dos jogadores de futebol saiu de baixo. Mas poucos buscam se
informar sobre política. Resolvi me aprofundar porque muita coisa
estava em jogo pra quem vem do mesmo lugar que eu vim. Os que escolheram
a direita por querer uma mudança não pensaram nas consequências.”
Ativismo inspirado em ícones negros
Depois de uma aula de história, Lucas Santos teve curiosidade de pesquisar mais sobre a figura de Martin Luther King Jr.,
pastor e ativista norte-americano que dá nome à principal avenida de
Irajá. Aos poucos, o interesse por personalidades do passado o levou a
conhecer Nelson Mandela e Zumbi dos Palmares.
“Eu achava que ser chamado de ‘macaco’ ou ‘pretinho’ era uma
brincadeira. Meus pais me diziam que isso não era certo, mas só entendi o
que significa racismo ao descobrir a história desses líderes negros.”
O gosto pelo rap
também ajudou a moldar sua consciência social. “No começo eu ouvia só
por ouvir. Com o tempo, passei a estudar as letras e aí, sim, entendi a
mensagem.” Pela habilidade com a bola nos pés, Lucas ganhou bolsa em um
colégio particular de Bento Ribeiro, onde estudou até o último ano do
ensino médio. Se dividia entre as aulas,
os treinos no Vasco e os jogos estudantis. “Foi um diferencial ter
estudado numa boa escola. Tive essa sorte. Mas nem todos nascem com
talento para o futebol. Por isso, oferecer educação pública de qualidade
tinha que ser obrigação de qualquer governo.”
Na
Rússia, sem ainda compreender o idioma local, diz não ter notado nenhum
tipo de manifestação racista nos jogos. “Sei que outros jogadores já
sofreram com isso por aqui, mas, diretamente, ninguém me hostilizou.” No
Brasil, porém, a discriminação sempre foi perceptível. “Desde muito
cedo, me insultam com racismo
nos campos de futebol. Procuro me blindar da ignorância das pessoas.” O
atacante defende que mais personalidades do esporte devem se mobilizar
em torno do enfrentamento ao racismo. “Uma mobilização que inclua
jogadores brancos nessa luta que é de todos. As pessoas famosas precisam
se engajar contra o preconceito de raça, classe e gênero.”
Seu
plano é permanecer na Europa, perto do objetivo de disputar uma
Champions League. No entanto, se mostra motivado a retornar ao time que o
revelou caso o CSKA não exerça a opção de compra ao fim do contrato de
empréstimo, sobretudo pelo propósito de marcar o nome na galeria de
craques notáveis em São Januário. “Para mim, a história do Vasco, que contribuiu para a inclusão de negros e pobres, é muito inspiradora. Espero ter a oportunidade de voltar e me tornar mais um ídolo negro do clube.”
Fonte: Elpais
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