Café também se utiliza do poder da música para defender o lugar de fala dos negros
“Falar sobre a beleza negra, o empoderamento, o assumir a negritude, tudo isso é fator de existência.” Com essas palavras, Marcelo Fernandes Rocha — conhecido como Marcelo Café — defende o poder de fala e a importância de se posicionar em uma sociedade racista.
Destaque na cena artística brasiliense, o cantor e compositor de 46
anos passeia pelos estilos do samba e do samba-rock com forte militância.
“Temos de tomar posição, celebrar nossa negritude com o que é nosso de
direito. A música brasileira é negra, a cultura é negra, o carnaval é
negro, o samba é negro.”
Marcelo
nasceu em Niterói (RJ). Aos 10 anos, veio para Brasília com a família
para acompanhar o pai, funcionário da Rádio Planalto. Ainda criança,
teve contato com instrumentos musicais. “Comecei a tocar de 7 para 8
anos. Minha mãe deu meu primeiro violão, me ensinou os primeiros
acordes”, lembra. Na infância e em parte da adolescência, tocava na
igreja acompanhando a mãe, que era do coral. Já adulto, fez
apresentações em barzinhos e, em 2007, assumiu o vocal da banda autoral
Casa-Grande, que misturava bossa-nova e rock. “Esse foi um dos momentos
mais importantes da minha carreira, para me aceitar como compositor.”
O
morador de Ceilândia se consolidou na carreira e coleciona prêmios por
suas composições, a exemplo de A Revolução é Preta, ganhadora do
Festival Universitário de Música Candanga (Finca), em 2017. No ano
seguinte, Marcelo foi finalista do festival de música da Rádio Nacional
como melhor intérprete.
O artista conta que a
letra da canção premiada veio por inteira após ler a frase “I have seen
God and she’s black” (em português, “Vi Deus, e ela é negra”), usada
pelo movimento Black Powers, nos Estados Unidos. “A Revolução é Preta
foi composta em um momento mágico. Estava na Universidade de Brasília,
andando do ICC Norte para o ICC Sul, quando tive a visão de uma mulher
sob as nuvens e, ao redor dela, ogans negros tocavam tambores. E ela
vinha trazendo o samba, a cura. É uma música muito forte, que fala de
empoderamento, de amor”, relata.
E
empoderamento tem de sobra nas canções de Marcelo Café. A primeira
composição de cunho étnico e político foi Preto Empoderado. A letra,
feita em parceria com Cristiane Sobral, fala sobre a beleza do negro, de
se aceitar como é, com o cabelo black, a cor de pele. “Tem músicas
minhas que eu toco hoje que existem há pelo menos 10 anos, mas a gente
sempre fica na dúvida de colocar para jogo. Especialmente quando é uma
música política como a minha. Eu demorei muito para começar a revelar”,
expõe o artista, que pretende lançar um disco apenas com canções que
enaltecem a negritude. No novo EP, programado para ser lançado no meio
do ano que vem, haverá sete músicas autorais, entre elas, A Revolução é
Preta, O Samba Cura e Monalisa é Negra.
A
inspiração para essa reverência de fala por meio da música veio de um
outro artista influente. “O Luiz Melodia foi importante para o meu
reconhecimento como negro. Quando eu vi esse cara cantando Pérola Negra e
a forma como ele se movimentava no palco, vestido todo de vermelho, eu
pensei: ‘olha só esse cara, eu também posso fazer isso’”.
Preconceitos
Para
Marcelo Café, dificilmente um negro não tenha passado por algum
episódio de preconceito no Brasil. Um gesto, um olhar, uma fala, que, às
vezes, nem se percebe. “Quando você desperta para isso, é fácil notar
como a televisão te invisibiliza. Apesar de ser maioria na população, o
negro é minoria em muitos lugares e nos espaços de poder. O Brasil não
assume que é um país racista, não assume que existe essa segregação, que
existe o racismo institucional que nos mata todos os dias, nos tira
direito.”
Uma das frases destacadas pelo músico durante a entrevista ao Correio
foi que “a gente não nasce negro no Brasil, a gente se torna negro”. De
acordo com ele, todo o sistema colabora para isso. “Quando uma criança
negra sai de casa para ir à escola, ela se depara com uma realidade em
que a cor de pele dela não é aceita, o cabelo não é o bonito. E
principalmente o ensino de história não favorece. E, nesse processo,
você se torna realmente negro, começa a perceber como as pessoas te
olham. Com isso, vem o empoderamento, o orgulho e o entender o que é ser
negro no país.”
Projetos
Com
20 anos de carreira como músico, Marcelo Café também movimenta a cena
artística da cidade com vários projetos independentes, principalmente em
regiões da periferia. Um deles é o Tardezinha do Samba, que ocorre em
Ceilândia e, em 28 de dezembro, terá sua segunda edição. Será na Casa do
Cantador, das 12h às 23h. Onze artistas do DF vão se apresentar, e a
entrada é gratuita.
Outra iniciativa é o Baile
do Café, realizado sempre em maio, para comemorar o aniversário do
cantor. O evento, aberto à população, mistura várias vertentes da
cultura negra, como o soul, charme e o rap.
Sacerdote
No
candomblé, ogan é o nome do sacerdote escolhido pela divindade
ancestral orixá, que permanece lúcido durante todos os trabalhos. Não
entra em transe, mas, ainda assim, recebe a intuição espiritual.
Geralmente toca instrumentos de percussão.
Preto Empoderado
Preto de cabelo black não é homem de bem
Preta de cabelo black não tem a aparência que convém
Elas são negras, o manual da melanina
Então abaixa, alisa, corta e investiga
Não sabe que tem que clarear
Que ousadia
Pois espere o inesperado
É o preto empoderado
Eu tenho orgulho da minha cor, do meu cabelo e do meu nariz
Porque eu sou crioulo
Monalisa Negra
Eu fiz o samba só pra ela
Num domingo de manhã, que o céu acordou o dia
Lá na feira eu vi você soltar o pixaim
Renascença ébano, um Da Vince negro pixe
Um sorriso, um enigma
Me encantando e convidando
Me senti privilegiado quando ela me fitou
Uma tela feita óleo
Que oxalá me regalou
Monalisa negra dominando tudo
Na cor de tua pele, escrevi o meu futuro
Fonte: correiobraziliense
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