Por Marcio André dos Santos*,
No
Brasil de hoje é praticamente consenso considerar o racismo e
adiscriminação racial como mecanismos combinados que estruturam as
relações sociais, cujos resultados diretos se expressam em prejuízos
econômicos e ocupacionais para os negros (pretos e pardos de acordo com a
classificação oficial do IBGE). Análises estatísticas produzidas por
agências de pesquisa do governo federal, como o Instituto de Pesquisa
Econômica e Aplicada — IPEA sustentam de forma concreta o abismo social
existente entre brancos e negros ao longo do tempo. Apesar de
verificadas melhorias nos índices sociais para praticamente todos os
grupos sociais nas últimas décadas, as desigualdades raciais continuam a
figurar como um dos principais desafios brasileiros. As distâncias
sociais entre os dois grupos evidenciam-se especialmente no campo da
trajetória escolar e da educação em todas as suas fases: ensino básico,
fundamental, secundário e superior — incluindo a pós-graduação
(mestrado, doutorado, pós-doutorado).
A
desigualdade provocada nos primeiros anos de vida escolar tende a
surtir efeitos permanentes ao longo da vida. Os sociólogos Carlos
Hasenbalg e Nelson do Vale e Silva desenvolveram uma teoria que chamaram
de “ciclo cumulativo de desvantagens” para explicar como esse fenômeno
se manifesta na vida das pessoas a cada geração. O argumento é
basicamente o seguinte: por causa das condições de pobreza geradas pelo
racismo estrutural, famílias negras terminam por deixar como “herança”
baixos índices de escolaridade aos seus filhos que, por sua vez, irão
determinar o lugar de subalternidade social destes no mercado de
trabalho. Consequentemente, os filhos de uma geração precedente terão
muito mais dificuldades em deixar como herança condições adequadas a sua
prole, reproduzindo a dinâmica cíclica de desvantagem ao mesmo tempo
social e racial (na realidade a dimensão racialdas desigualdades está
“colada” a lógica estrutural da reprodução social). Portanto, mesmo que
se verifique mobilidade social individual, a imensa maioria dos negros
continua a herdar as desvantagens geradas no passado e reproduzidas no
presente por causa da continuidade (intencional) do racismo estrutural.
Esse
é um dos motivos pelos quais o debate sobre a superação do racismo no
campo da educação é tão importante atualmente. É necessário que haja
transformação profunda neste campo para que se construa uma sociedade
mais igualitária e para isso é preciso que um conjunto de políticas
públicas específicas seja desenvolvido. Neste sentido, este texto tem
como objetivo travar um breve diálogo com educadores(as) sobre o papel
do racismo em nossa formação social e maneiras de enfrentá-lo no
cotidiano escolar. Não existem respostas fáceis a estas questões. Inicio
com uma breve contextualização de algumas características de nossa
formação social ou, mais apropriadamente, da formação racial brasileira.
Formação Racial Brasileira: breves apontamentos
A
formação social brasileira é caracterizada pelo conjunto de relações de
variados grupos nacionais, étnicos e raciais constituidores de nosso
país. Europeus, indígenas, africanos, asiáticos e povos árabes tiveram
aqui uma gama de relações e conflitos, seja no campo político,
comercial, religioso ou afetivo-sexual. Inicialmente os colonizadores
portugueses, homens em sua maioria, tiveram seus primeiros transcursos
sexuais com as mulheres indígenas e depois com as africanas e negras
brasileiras, geralmente com base na violência sexual e no estupro. Este
“(des)encontro colonial” resultou uma imensa população mestiça. Entre o
final do século 19 até meados dos anos 30 do século 20, ideias de
superioridade racial eram comuns entre os membros das elites
brasileiras, considerando aqui elites intelectuais, políticas e
econômicas. Devido à influência das teorias racistas vigentes na Europa,
reinava entre nós a noção de que os brancos eram superiores aos negros.
Aos brancos eram atribuídos a capacidade de constituir grandes
civilizações, contrário do que se pensava sobre os negros, vistos como
selvagens e bárbaros, incapazes de realizações civilizacionais.
A
mestiçagem, largamente praticada no país, foi vista como empecilho ao
progresso que se desejava. Os pensadores sociais e políticos das décadas
finais do século 19, influenciados pelo racismo científico e pelas
ideias evolucionistas e deterministas comuns nos círculos intelectuais
da época, eram céticos quanto ao futuro racial brasileiro. Dessa forma,
limpar o “sangue negro e mestiço” da população em prol do “sangue
branco” europeu parecia a solução mais lógica a ser considerada.
O
branqueamento por meio da promoção da mestiçagem transforma-se em novo
projeto político de engenharia racial. Além do mais, o embranquecimento
significava passaporte e condição necessária para transformar o Brasil
em uma nação digna desse nome. Embranquecer tinha o mesmo significado
que modernizar. Todo o aparato estatal da época foi mobilizado a fim de
possibilitar a importação de imigrantes europeus, considerados
racialmente superiores e mais aptos ao trabalho agrícola e ao
desenvolvimento industrial. Era comum imaginar datas para que este
processo tivesse fim. No final do século 19, João Batista de Lacerda
acreditava que em cem anos a mestiçagem transformaria todos os
brasileiros “de cor” em brancos adaptados as condições especiais dos
trópicos.
Apesar
do intenso influxo de “sangue europeu”, em especial para os estados do
sul e sudeste, a população mestiça não diminuiu conforme o esperado. A
mestiçagem e/ou o embranquecimento não pareciam mecanismos suficientes
para frear o crescimento demográfico da população negra. Em meados dos
anos 30 inicia-se um processo de reversão no pensamento racial
brasileiro. A mestiçagem deixa de significar um problema para a
identidade brasileira e passa a ser vista como o principal atributo da
nacionalidade. Torna-se um valor. O mestiço e/ou mulato passam a ser
vistos como o brasileiro por excelência. Tal transmutação, é claro, não
se deu de forma imediata, tampouco tranquila. Uma série de fatores
teriam influenciado essa guinada no pensamento racial brasileiro: o
modernismo literário; o culturalismo antropológico; e as condenações às
teorias racistas na Europa.
Um
dos principais expoentes desta mudança de paradigma do “dilema racial
brasileiro” foi o sociólogo pernambucano Gilberto Freire. Em sua
principal obra, Casa Grande & Senzala, publicada em 1933, Freire
desenvolveu uma complexa explicação da formação nacional brasileira e
do papel dos diferentes povos em tal formação, especialmente
portugueses, indígenas e africanos. Atribui-se a este autor a ideia
segundo a qual o contato íntimo entre estes três “povos”, juntamente com
as características típicas de uma sociedade patriarcal teria gerado uma
espécie de “democracia étnica e social” singular. Na verdade, jamais
tivemos algo semelhante a uma democracia racial. Pelo contrário, o
consenso acadêmico, político e estatístico continua a reforçar a tese de
que os padrões de desigualdades raciais entre brancos e negros resistem
em ser revertidos. Desde pelo menos os anos de 1930 com a emergência da
Frente Negra Brasileira e o surgimento dos movimentos negros
organizados que a democracia racial é denunciada como estratégia
ideológica que mantém os brancos na condição de dominantes em todas as
dimensões sociais, políticas e econômicas no país.
Devido
a estes aspectos que é fundamental entender as dinâmicas da formação
racial brasileira como continuidade de padrões sociais e econômicos em
benefício do grupo racial branco e, ao mesmo tempo, como fracasso de um
processo de modernização que se revelou incapaz de romper e superar as
assimetrias sociais do passado.
Do racismo ao antirracismo racista
O
racismo anti-negro típico do final do século 19 e início do século 20
vai dando lugar a um tipo de antirracismo institucional ou no que passo a
chamar de antirracismo racista. Em outros termos, após os anos 30
defender ideias abertamente racistas já não era mais tão politicamente
correto quanto antes, ainda que muitos cientistas e intelectuais
continuassem a defender princípios eugenistas, pregando a purificação
racial dos não-brancos como, por exemplo, cientistas sociais como Renato
Kehl, Oliveira Vianna e literatos como Monteiro Lobato. Estudiosos das
relações raciais contemporâneos designam essa mudança como o surgimento
do “mito da democracia racial”. A crença de que o pertencimento racial
das pessoas não era razão suficiente para impedir os processos de
mobilidade social influenciou vários estudiosos das relações raciais,
como Donald Pierson e Arthur Ramos.
De
construção intelectual da formação social brasileira o “mito da
democracia racial” vai lentamente ser incorporado a um tipo bastante
específico de ideologia estatal. Praticamente todas as instituições
sociais passaram a sustentar e a defender o antirracismo como um valor
nacional. No imaginário das elites políticas, racismo de verdade era o
que se praticava nos Estados Unidos e África do Sul, já que nestes
países havia leis rigorosas de proibição de casamentos interraciais, de
separação física entre brancos e negros dentre inúmeras outras regras de
restrição de contato e convívio. Aqui o que teríamos era no máximo um
preconceito social. Se os negros eram os mais pobres dentre os pobres
não era por causa de práticas racistas presentes nas relações sociais e
sim devido a herança de desigualdades sociais geradas pelo arcaísmo de
uma sociedade que durante séculos foi escravocrata, rural, logo,
atrasada.
Do
ponto de vista político-ideológico, o antirracismo racista brasileiro
só veio a perder força na segunda metade dos anos 90 do século 20, ainda
que seja comum representantes de instituições governamentais declararem
que não temos um problema propriamente racial. A partir do
reconhecimento estatal de que o racismo e a discriminação racial operam
como mecanismos de manutenção de distâncias socioeconômicas entre
brancos e negros é que ações de superação das desigualdades raciais
começaram a ser desenhadas e postas em prática. Evidentemente que o
reconhecimento oficial desses mecanismos não significou imediatamente
mudanças de comportamento e mentalidades. O racismo institucional
continua a ser largamente praticado em nosso país, ainda que ninguém
goste de reconhecer-se racista ou preconceituoso.
Benefícios para uns, prejuízo para todos
O
antirracismo racista brasileiro não tem nada de cordial e amistoso como
muitos imaginam e sustentam. Pelo contrário. O antirracismo racista que
impera entre nós é exatamente aquele que continua a impedir o avanço de
iniciativas que tentam superá-lo. Apesar dos avanços verificados nas
últimas décadas no campo das políticas em prol da igualdade racial,
ainda temos muito o que fazer. A persistência de índices elevados de
discriminação racial no acesso à educação em todos os níveis têm como
resultado direto baixos níveis de qualificação profissional de negros em
detrimento de brancos. Ainda que brancos também amarguem elevados
índices de desigualdade social, a situação é bem pior para os negros em
todos os campos da vida: acesso a saúde, exposição à violência urbana,
desemprego, déficit de moradia, chances educacionais, etc.
Depois
de dito isso tudo, como fazer para trabalhar com este tema em sala de
aula? Não temos espaço suficiente aqui para propor metodologias e
alternativas para trabalhar com esta temática. Entretanto, já temos
disponíveis alguns instrumentos que podem auxiliar educadores(as) de
todo o país neste sentido. A Lei n. 10.639/03, que estabelece o ensino
de história da África e da cultura afro-brasileira, conta hoje com um
conjunto de iniciativas desenvolvidas a fim de auxiliar os profissionais
da educação nesta direção
Em
suma, o combate ao racismo institucional e a todas as formas de
preconceito associadas a cor da pele e ao pertencimento racial deve ser
encarado por todos nós — educadores(as), formadores de opinião,
acadêmicos, cidadãos comuns — como um dever coletivo em prol de um país
melhor que valoriza e respeita as diferenças, sejam étnicas, raciais ou
de gênero.
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*Marcio André dos Santos é cientista político e professor da UNILAB, campus dos Malês, Bahia.
Fonte: Medium
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