Por Fabiana Reinholz,
A data oportuniza a discussão sobre os meios para superar a opressão histórica sobre as mulheres negras
A data oportuniza a discussão sobre os meios para superar a opressão histórica sobre as mulheres negras
25 de julho: Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha (Foto: Imagem retirada do site Brasil de Fato)
Mesmo pertencendo a maior parcela da população, uma vez que vivemos em um país no qual temos uma maioria de negros e mulheres, as mulheres negras permanecem sendo as mais exploradas e negligenciadas socialmente. Realidade que pode ser constatada nos dados que tratam do mercado de trabalho, no mapa da violência ou na representatividade política. A frente e por trás disso, o racismo e preconceito, cada vez mais arraigados. O dia 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Afro-Latina, Americana e Caribenha e também Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, é uma boa oportunidade para a reflexão sobre essa situação.
No país, elas são 55,6 milhões, chefiam 41,1% das famílias negras e recebem, em média, 58,2% da renda das mulheres brancas. Os dados foram extraídos do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, de 2015, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Já no Estado do Rio Grande do Sul, de acordo com o último Censo, em 2010, a população negra é de 22%. Sendo esse percentual baseado na autodeclaração, a estimativa variável é que haja 17% de mulheres negras. Cabe observar que ao falar de mulheres negras, estão as mulheres pretas, pardas (de diversas miscigenações).
Quando observamos os dados de homicídios, os dados não são nada animadores. De acordo com o Atlas da Violência 2019, foram registrados 4.936 assassinatos de mulheres em 2017, sendo que 66% das vítimas é negra, morta por armas de fogo, tendo boa parte acontecido dentro de casa. Na política, dados da campanha Mulheres Negras Decidem apontam que, em 2018, dos 513 parlamentares, apenas 10 eram mulheres negras.
No mercado de trabalho, de acordo com Lucia Garcia, economista do Dieese e especialista em mercado de trabalho, em 2017, quando ultrapassávamos o período em que a crise brasileira e latina se tornou crônica, se observa que as mulheres negras voltam a enfrentar taxas de desemprego (21,1% da Força de Trabalho negra feminina) muito mais altas que as mulheres não negras (11,1%) e do que os homens não-negros (9,4%), tornando-se assim o grupo mais vulnerável ao desemprego.
“Além disso, quando obtiveram ocupações, as negras estavam em maior proporção em inserções vulneráveis, como o assalariamento ilegal (sem a CTPS assinada), 6,6% das ocupadas negras, enquanto entre as não-negras essa proporção era de 3,8%. Enclaves produtivos associados ao trabalho pesado e pouco valorizado também tradicionalmente são os lugares da mulher negra, como o emprego doméstico, que absorvia 23,4% das negras ocupadas, ao passo que apenas 11,5% da não negras. Como resultante desse quadro, a remuneração das negras tem ficado muito aquém de outros segmentos populacionais (68% do rendimento médio dos homens não negros)”, aponta.
“No período recente, as mulheres negras conheceram melhoria em sua condição no mundo do trabalho, sobretudo entre 2005 e 2014, mas tão logo o esgotamento do modelo do governo democrático-popular se apresentou, sendo substituído pelo austericídio, a condição dessa população piorou rapidamente”, conclui.
Para além dos números
Além de confrontar os números, há a realidade subjetiva que precisa ser analisada quando falamos da luta e resistência das mulheres negras, subjetividade observada no silenciamento e abafamento de suas vozes. Para a doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Winnie Bueno, o pacto narcísico da branquitude e as novas formas de silenciamento da violência racial são duas características contemporâneas que aprofundam os desafios do combate ao racismo no Brasil. “Estamos sendo governados por um presidente que nega a existência do racismo. Isso é grave, isso é bastante sério e isso faz com que o governo possa se omitir de enfrentar o racismo enquanto problema social”, ressalta.
Winnie Bueno: “Estamos sendo governados por um presidente que nega a existência do racismo. Isso é grave, isso é bastante sério” / Foto: Arquivo pessoal
Ela destaca que as mulheres negras vivem uma tensão dialética entre ativismo e opressão, o que faz com que os momentos de maior violência sejam também momentos de ampliação de formulações políticas, educacionais e estratégicas. “É um momento onde direitos dos grupos oprimidos estão sendo mais diretamente atacados, e isso impacta na vida de mulheres negras, mas é também nesses momentos que as formulações e estratégias políticas desenvolvidas por essa coletividade adquirem complexidade”.
No que diz respeito ao Sul do país, para além de todos os desafios relacionados ao racismo e ao sexismo, temos a questão da invisibilidade, frisa Winnie. “A narrativa que não existem pessoas negras no Sul faz com que a nossa atuação seja mais dificultada. A primeira organização de mulheres negras do Brasil nasceu aqui, a ONG Maria Mulher, da educadora Maria da Conceição Fontoura. Entretanto, não é nacionalmente reconhecida e celebrada como é Sueli Carneiro, por exemplo. Essas mulheres são contemporâneas, ativistas fundamentais para a luta de mulheres negras, mas a dinâmica de marginalização das mulheres negras no sul oculta trajetórias”, conclui.
Pioneira
A ONG Maria Mulher, foi a primeira organização a juntar feminismo e movimento negro no país. Ela foi construída 1987, momento da redemocratização do país. Na época, de acordo com Sandra Maciel, uma das coordenadoras da ONG juntamente com Maria Conceição Lopes Fontoura, o movimento negro tinha as suas pautas mas as mulheres negras estavam construindo as suas próprias formas de enfrentamento ao racismo e ao machismo. Ao se analisar a situação das mulheres negras no estado, afirma, “Estamos por nossa própria conta, fazendo os caminhos, criando oportunidades, porque ainda somos as últimas da pirâmide em uma sociedade racista e sexista”.
Em relação aos avanços, Sandra destaca a conquista em postos de trabalho, onde eram vistos somente pessoas não negras. “Colorimos as universidades do Brasil afora”. Em contrapartida os retrocessos, aponta, são os a sociedade está vivendo na questão da reforma da aposentadoria, nas mudanças das leis trabalhistas, nos ataques na educação. Ao abordar a questão dos números de violência às mulheres negras, Sandra, frisa que a precariedade das condições sociais, econômicas, psíquicas faz da mulher negra uma vítima potencial de quase todos os tipos de violência e nisso está incluso os homicídios e feminicídios.
Mídia (jornalismo), judiciário e mercado editorial
Esses três segmentos, assim como em tantos outros, refletem a imagem e presença da mulher negra na sociedade como um todo, onde a estética não é aceita, a história é invisibilizada e a voz abafada.
Jeanine Ramos: “As novas jornalistas negras estão abrindo mais espaço. Os tempos são outros” / Foto: Fabiana Reinholz
Para a jornalista Jeanice Dias Ramos, as dificuldades não terminaram para as mulheres negras jornalistas, mas apesar de todos os percalços, ela acredita que a nova geração traz uma nova esperança e perspectiva. “Nós, jornalistas negras, com eu, a Vera Daisy, a Vera Cardozo, a Delcinara Nascimento, passamos por uma etapa muito difícil. Éramos muito solitárias nas redações, uma no meio de uma multidão. Isso está alterando, é um grãozinho de areia, mas está alterando. As novas jornalistas negras estão abrindo mais espaço, e não é um processo tão doloroso como foi o nosso. Os tempos são outros, as mentalidades não estão tão enraizadas”, acredita.
A também jornalista e repórter, Fernanda Carvalho, enfatiza que ainda se está muito aquém do ideal. “Temos que seguir caminhando e abrindo espaços”, afirma. Tratando da presença das mulheres na mídia e no jornalismo, Fernanda pontua que duas questões precisam ser vistas: a visibilidade e a representatividade. “Visibilidade é bacana, é bom vermos mais profissionais negras diante da tela, por exemplo, mas ainda precisamos estar nos outros espaços: redatores, editores, pauteiros.. Aí entra a representatividade. Temos que ter voz ativa nos espaços decisórios”, analisa.
De acordo com ela, na prática, infelizmente, depende-se de uma profissional negra em muitas redações para que as pautas ganhem espaço. “De uma maneira geral, quem pensa o jornalismo não é ainda sensível neste sentido. E quando é, parece que ainda não o suficiente. Ainda temos muito a avançar, mas também é importante vermos que já caminhamos neste sentido”, observa.
Ao se falar de espaços de poder, a juíza Karen Luise Vilanova Batista de Souza Pinheiro, da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre, relata que as mulheres negras não ocupam esses espaços, que a ausência é visível em todos eles: executivo, legislativo e judiciário. “Essa condição gera um saldo negativo de vocalização de demandas próprias, precarizando condições de sobrevivência. Quem melhor pode dizer sobre a escola, o saneamento básico, o sistema de saúde, a habitação, o salário para uma mulher negra do que ela própria? Ninguém. Portanto, vivemos um quadro dramático”, analisa.
Juíza Karen: “Nosso Judiciário é branco e do gênero masculino. Não há pluralidade e diversidade” / Foto: Arquivo pessoal
No setor Judiciário, Karen aponta que a realidade é de um setor branco e do gênero masculino. “Realizamos a justiça com esse viés unidimensional sobre o mundo. Não há pluralidade e diversidade no Poder Judiciário. Represento menos de 1% da magistratura feminina preta brasileira”, afirma. A magistrada conta que na maioria das vezes, em encontros com estudantes, eles dizem nunca terem visto uma juíza negra.
“O que significa dizer que gerações não constituem sua identidade de forma positiva, compreendendo como possível estarem em determinados lugares e exercerem certas funções. Ao contrário, mulheres negras constituem-se de modo negativo, percebendo-se como incapazes de ocupação de espaços e de exercício de poder. Acaso as coisas permaneçam como estão, nada mudará”, reflete. Para ela, vive melhor a mulher negra e sua família quando lhe são garantidos direitos sociais e trabalhistas.
No mercado editorial a jornalista e editora literária Fernanda Bastos, da editora Figura de Linguagem, diz que o segmento é muito similar aos outros espaços. “O racismo é estrutural, e o mercado editorial reflete essas opressões de gênero, raça e classe. Avanços têm sido conquistados, especialmente a partir do século 21, por conta da organização das mulheres negras, mas os ganhos coletivos surgem lentamente”, observa.
Fernanda Bastos: “O racismo é estrutural, e o mercado editorial reflete essas opressões de gênero, raça e classe” / Foto: Arquivo pessoal
Pode-se ter uma ideia das dificuldades enfrentadas, conforme Fernanda, ao pensar no fenômeno literário do século 20 que foi Carolina Maria de Jesus, em como foi difícil para ela se inserir e como, até hoje, tentam deslegitimar seus feitos e sua obra. “Mesmo sendo esse arrasa-quarteirão em vendas e trazendo a perspectiva dela, o lugar de fala, ainda assim houve estranhamento e rejeição do mercado”, pontua.
Na avaliação da editora, escritoras africanas que são sucesso de venda, como Chimamanda Ngozi Adichie, têm demonstrado que a experiência negra no mundo tem qualidade literária é vendável e contribui para uma nova perspectiva quando o assunto é literatura feita por mulheres negras. “Essas autoras mundialmente conhecidas alargam as possibilidades de consumo para outras mulheres negras, pois há um público que há muitos anos vinha sendo desprezado e que hoje começam a ser atendidos. Os êxitos de vendas e de projeto literário de Conceição Evaristo, Geni Guimarães e Ana Maria Gonçalves são exemplares do poder das narrativas de mulheres negras no Brasil”, afirma
Fernanda Carvalho sintetiza os desafios das mulheres negras em fazer com que suas pautas sejam vistas de maneira tão universal como outras pautas são. “Por exemplo, não vemos o genocídio da juventude negra ser tratado pela mídia – generalizando – como um problema do país. Parece que é um problema só nosso. Se é a mãe negra que chora, a gente que se resolva”, exemplifica. “Não há retrocesso maior do que voltarmos a dizer nos dias de hoje que somos todos iguais. Ou, pior ainda, que racismo nem existe. Não vamos deixar o mito da democracia racial, que só nos atrasou na luta por equidade, volte e ganhe força novamente. Vamos seguir em frente, honrando os passos daquelas que vieram antes de nós e pelas mulheres negras que darão continuidade a nossa luta”, finaliza.
Resistência e luta
“O 25 de julho nos lembra de nossos desafios, de nossas dores, mas também nos unifica. É um momento importante para debatermos os meios para superarmos a opressão histórica que opera em diversos níveis sobre as mulheres negras. Se o momento político é desfavorável para os ativismos, não é novidade para as mulheres negras, porque costumamos cavar nosso espaço sem contar com muita empatia”, conclui Fernanda Bastos.
Em 1992, na cidade de Santo Domingo, na República Dominicana no Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas, criou-se a Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas, onde definiu-se o dia 25 de julho como Dia da Mulher Afro-latino-americana e Caribenha. No Brasil, oficializou-se a data em 2014, quando a então presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 12.987 determinando o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra.
Tereza de Benguela, foi uma mulher quilombola, rainha e chefe de estado, que viveu no século XVIII no Vale do Guaporé. Ela liderou o Quilombo de Quariterê, no estado do Mato Grosso, que resistiu da década de 1730 até o final do século.
Atividades alusivas ao dia 25
Nesta quinta-feira, acontece uma aula pública, na Esquina Democrática, no centro de Porto Alegre, a partir das 17h. O debate vai contar com a participação de Claudenice Rodrigues (moradora da Ocupação Lanceiros Negros e integrante do Movimento de Mulheres Olga Benario); Carla Zanella (coordenadora da Emancipa Mulher – Escola Feminista e Antirracista, cientista social, graduanda em direito); Tainah Motta do Nascimento (Advogada lesbofeminista antirracista e mestranda em Educação pela Unisinos, pesquisadora da trajetórias de professoras negras lésbicas no ensino público); e Lucia Garcia (Economista e especializada em teoria econômica, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Economia/ UFRGS, técnica do DIEESE e rofessora da Escola Ciências do Trabalho do DIEESE, coordenadora dos estudos e informativos sobre a inserção da População Negra em mercados de trabalhos metropolitanos, bem como sobre a condição de inserção produtiva das Mulheres Negras).
No sábado (27), acontece o debate “Mulher Negra Latino-americana e Caribenha e Lei 10.639/03”, no Bar da Carla, na Lobô da Costa, 24, Porto Alegre, a partir das 14h30. A roda de conversa terá a participação de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (professora da rede municipal e criadora e coordenadora do Projeto Meninas Crespas); Perla Santos (professora da rede estadual, integrante do Coletivo Alicerce); e Karen Santos (vereadora de Porto Alegre pelo PSOL e Procuradora Especial da Mulher na Câmara de Vereadores).
Fonte: Brasil de Fato
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