Dandaras rebeladas
As mulheres negras estão prontas para escrever um novo capítulo em sua história de lutas em 2016. O afrontamento ao racismo segue em conversas nas ruas, rodas nos terreiros e quilombos, encontros nas universidades, produções nos estúdios, rimas no palco e ações nas redes sociais
por Daniela Luciana da Silva e Juliana Cézar Nunes,
A diretora da ONG Criola (RJ), Jurema Werneck, enxerga “novas pontes estendidas entre nós que estamos na luta em diferentes campos, novas aproximações, novas possibilidades de termos uma agenda convergente e potente”. É uma visão que converge com a da ativista e publicitária baiana Larissa Santiago, integrante do Blogueiras Negras, criado em 2003: “Acreditamos que 2016 será o ano de refazer os laços entre nós e entre os outros que acreditam nas mudanças e na revolução capitaneada pela mulher negra”.
Este momento de renovação e confiança na construção de alianças decorre também da construção coletiva da Marcha das Mulheres Negras, realizada em 18 de novembro de 2015, em Brasília. Uma contundente mostra do potencial de articulação e incidência das herdeiras de Dandara e tantas outras anônimas guerreiras, heroínas do cotidiano que não estão nos livros de História oficial.
Cerca de 50 mil mulheres negras de todo o país atravessaram o ano de 2015 em preparação conjunta para estar em Brasília. Elas ocuparam as ruas da capital para representar com seu corpo e alma os 48,6 milhões de mulheres negras brasileiras, cerca de 25,5% da população brasileira (IBGE).
Numa vitoriosa ocupação marcada pelo compartilhamento, afirmação, capacidade de organização e força de mobilização, essas negras brasileiras mostraram à sociedade e aos governos a concretude de outra face. Uma imagem muito distante do estereótipo de submissão e subalternidade que insistem em nos imprimir.
Tambores ancestrais e virtuais
Para Valdecir Nascimento, do Instituto Odara (BA), este é um momento-chave, pois as mulheres negras brasileiras estão mobilizadas. “Precisamos multiplicar e mantê-las atuando em seus estados, municípios, povoados e em todo e qualquer lugar com instrumentos mais efetivos, mais informações e uma rede nacional que possa orientá-las e mobilizar outras organizações em apoio às variadas demandas”, reforça Valdecir.
A baiana acredita que o caminho é atuar coletivamente e responder imediatamente. Construir orientações nacionais para os diversos casos e agir em bloco, definir as/os parceiras/os, além de estratégias de aproximação com os diversos movimentos sociais, construir acordos e pactos comuns. “Quem são os parlamentares e as parlamentares aliados, mas aliados mesmo? Temos cartas na manga, 2016 é ano eleitoral, precisamos pontuar nossas demandas inegociáveis”, finaliza.
O Instituto Odara coloca a circulação de informações e notícias como uma das metas para 2016, com a aplicação do Projeto da Agência de Comunicação Popular do Odara, impulsionando jovens negras a construir uma comunicação para a difusão do conhecimento produzido pelas organizações de mulheres negras; e a difusão de campanhas contra a violência doméstica, o genocídio da população negra e outros temas e situações de interesse do segmento.
Nessa seara, também integra os planos do Instituto Odara a execução do projeto “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”, uma ação direcionada para as mães dos jovens assassinados pela polícia e pelo tráfico. Essa é uma preocupação que se identifica de norte a sul do país entre as mulheres negras entrevistadas.
Gaúcha radicada em Salvador, a jornalista e produtora cultural Camila Moraes, 28 anos, criadora da revista eletrônica Acho Digno, tem como um dos desafios para 2016 retratar nos cinemas “O caso do homem errado – Júlio César”. Júlio foi um operário executado por policiais na década de 1980 em Porto Alegre. Inocente, recebeu a sentença de culpado por assalto e acabou condenado à morte dentro de um camburão. Passado e presente. É contra o direito de matar pessoas negras que as mulheres também continuam em marcha. Contra a chacina de Cabula, contra o extermínio diário de jovens negros em capitais como Rio de Janeiro, São Paulo, Belém, e que acontece também no interior, contra a morte de lideranças quilombolas, contra a violência cotidiana que mata e encarcera mulheres negras.
“Não deixaremos mais nossa juventude negra ser morta. Iremos retratar ‘O caso do homem errado’ para que haja uma reflexão da sociedade de que, quando mata um jovem negro, extermina uma família, uma comunidade, uma população. Para continuarmos vivos e não apenas sobrevivendo neste país, permaneceremos em estado de vigília, nos aliando entre nós”, avisa Camila.
Para ela, a “rede nagô” formada por mulheres e homens negros já permite que o tambor batido no Sul seja escutado no Norte, e vice-versa. Eventos de mulheres negras, como o Festival Latinidades, e de cinema, como o Fórum Itinerante de Cinema Negro (Ficine), mostraram o desabrochar de jovens flores negras na área do audiovisual, produzindo filmes com a temática negra, nos colocando no telão e nos representando de forma bela e digna.
“Comunicadoras negras tiveram seus trabalhos reconhecidos pela mídia e por uma parcela da população. Entre alguns nomes de destaque estão Luciana Barreto, Maria Júlia Coutinho, Maíra Azevedo, Mônica Santana e outras que ainda irão aparecer”, elenca Camila. “Com isso, verificamos o quanto representatividade importa, sim. Percebemos como é bom ter espelhos dentro e fora de casa para serem seguidos.”
Olho no olho
A comunicação também é a trincheira de Larissa Santiago, do Blogueiras Negras. A integração entre os espaços virtuais e presenciais constitui meta da ação do grupo, que publica textos de mulheres de todo o país. Embora a organização tenha se iniciado no ambiente virtual, uma das estratégias das blogueiras é fortalecer o contato direto neste ano. Para Larissa, é fato que precisamos alcançar mais e mais mulheres negras, e a sociedade civil como um todo. Por isso, entre as estratégias estão a materialização de trabalhos, o foco em ações off-line e o fortalecimento da comunidade por meio de experiências coletivas presenciais.
“Tivemos um imenso baque no que se refere à presença do Estado junto às demandas das mulheres negras: desfazer a Secretaria de Igualdade Racial, das Mulheres e Direitos Humanos para acoplá-la num ministério onde essas políticas se misturam nos parece bastante sintomático”, aponta a blogueira, para quem as mudanças mostram o quanto o conservadorismo político tem contribuído para retrocessos. “Temos avanços? Lógico, mas essas jogadas políticas nos dizem qual é nosso lugar e que precisaremos resistir e lutar muito mais para sermos ouvidas e termos nossas propostas concretizadas.”
A declaração do Decênio dos Afrodescendentes pela ONU, Anistia Internacional e a articulação com a Rede de Mulheres Afro-Latino-Americanas do Caribe e da Diáspora são vistas por Larissa como importantes parcerias para as mulheres negras brasileiras. As organizações internacionais ajudaram a dar visibilidade a uma série de violações de direitos, inclusive durante a ocupação das escolas públicas em São Paulo, quando mulheres e adolescentes negras foram protagonistas das mobilizações e sofreram repressão policial.
Entre as parcerias internacionais, a ativista Jurema Werneck, da Criola, destaca também a Associação Mulheres e Desenvolvimento (Awid, na sigla em inglês), que organizou e liderou uma delegação internacional de ativistas negras para a Marcha das Mulheres Negras, com representantes de diferentes países da África, Caribe e Américas. Em maio, na Bahia, a Awid vai promover um fórum com o tema “Futuros feministas: construindo poder coletivo em prol dos direitos e da justiça”.
Médica de formação e pós-graduada em Comunicação e Cultura, Jurema e outras ativistas negras do Rio de Janeiro fundaram há 23 anos a Criola para promover o empoderamento político de mulheres negras e fomentar ações em defesa de direitos. Elas levaram suas ações para o âmbito nacional em contato com outras organizações de mulheres negras, como a Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), da qual são integrantes.
No cotidiano, as mulheres da Criola têm se voltado tanto para o combate das violências cometidas nas redes sociais, com o lançamento da campanha contra o racismo virtual (www.racismovirtual.com.br), como para o amparo a mulheres que sofrem violência nas ruas. “A mãe de um dos cinco meninos metralhados pela polícia em dezembro no Rio de Janeiro já tentou suicídio três vezes. É essa dor! Os racistas, fascistas, LGBTfóbicos estão nas ruas descaradamente, e seus crimes compensam para eles e seus grupos”, denuncia Jurema.
Reparação
A doutora em Direito Ana Luiza Flauzina afirma que, ao longo da história do Brasil, o lugar do Estado não tem sido o de aliança, e sim de vilipêndio da população negra e das mulheres negras, em especial. Ana Luiza considera que as políticas pontuais ainda não podem ser consideradas um avanço, até porque nos momentos de “crise” são as políticas públicas voltadas a essa população que desaparecem do mapa.
“Estamos num processo de extermínio sistemático da juventude negra, de encarceramento em massa das mulheres negras, de interdição do exercício pleno da liberdade de culto com vilipêndio das religiões de matriz africana, ou seja, o genocídio está com as baterias aquecidas”, alerta a pesquisadora e fundadora da Brado, empresa voltada para a produção de conteúdos de interesse da população negra, com foco na produção audiovisual e na edição de livros.
O combate ao racismo acadêmico e à invisibilidade do pensamento de mulheres e homens negros guia o próximo ciclo de ações de Ana Luiza e da Brado. Ela acredita que as mulheres negras brasileiras estão num momento de amadurecimento político ímpar e são atores políticos cientes de seu papel na articulação das mudanças na estrutura social brasileira.
“Estamos vocalizando nossas potencialidades em primeira pessoa. Apesar de há muito estarmos cientes de nossa condição específica enquanto grupo social vulnerabilizado no Brasil, reunimos agora a capacidade política de dar visibilidade a essas demandas, articulando questões que envolvem as pautas feministas, negras e LGBT”, avalia Ana Luiza.
Essa capacidade política de articulação está presente em organizações de mulheres negras de todas as regiões do país. No Ceará, mais exatamente no Cariri, as mulheres negras do Pretas Simoa trabalham diversidade religiosa negra, fortalecimento de identidade, empoderamento de trabalhadoras domésticas e divulgação do hip hop. O grupo presta homenagem à Tia Simoa, que lutou pela abolição e liderou greves de jangadeiros cearenses ainda no século XIX.
A bibliotecária Dávila Feitosa, integrante do Pretas Simoa, lamenta que a todo instante seja necessário voltar à estaca zero do debate para contar desde o princípio a história das mulheres negras no Brasil e nas Américas. No âmbito regional, inserir as demandas nas agendas de governos, universidades e partidos políticos tem demandado um enorme esforço das organizações locais.
A reivindicação por creches públicas também faz parte dessa pauta. “Vemos a necessidade, por exemplo, da partilha da maternidade das mulheres pobres (em sua maioria mulheres negras) com o governo, propiciando o tempo necessário para que essas mulheres possam se dedicar à sua vida profissional e acadêmica”, ressalta Dávila. “O que nos motiva são as gerações de guerreiras anônimas que resumimos em nossas veias; espelhos que nos permitem ter orgulho do nosso próprio reflexo; e armaduras que permitem às nossas próximas gerações combater o racismo, o machismo e a homofobia com dignidade.”
Racismo
A rima de resistência é o que move a Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop (FNMH2). Uma de suas articuladoras, a rapper Vera Veronika, conta que as ações para 2016 são baseadas nas lutas diárias das mulheres da Cultura Hip Hop. Combate ao fim de todas as formas de violência contra as mulheres e ao genocídio de jovens está na agenda prioritária. A frente também apoia apresentações culturais e organiza o Encontro Nacional das Mulheres do Hip Hop. O trabalho tem inspirado batalhas, slams e grupos de todo o país. Meninas negras que descobriram no hip hop uma forma de se afirmar e se fortalecer.
“Várias instâncias governamentais têm apoiado e visibilizado a luta das mulheres negras; contudo, temos muito a avançar quando as políticas públicas destinadas às mulheres se tornam gerais ou genéricas. Não temos políticas efetivas para as mulheres negras quilombolas e de matriz africana; isso nos distancia das ações afirmativas e nos remete a um retrocesso indenitário”, frisa Veronika, que mora em Valparaíso de Goiás e transita entre o Entorno e o Distrito Federal, região em que o racismo e o ódio religioso têm violentado várias mulheres negras.
Em dezembro, o Ilê Axé Oyá Bagan, no Paranoá, amanheceu em chamas. A líder religiosa do terreiro, Mãe Baiana, acusa grupos racistas pelo incêndio, que colocou abaixo o barracão onde eram realizadas as principais cerimônias do terreiro. O atentado motivou a criação de um movimento em favor da instalação de delegacias especializadas nesses crimes. O Distrito Federal já inaugurou sua primeira unidade, sob protesto de policiais que alegam falta de pessoal para a nova delegacia.
“Precisamos conversar muito com os servidores para que eles entendam a importância dessa iniciativa. Vivemos sob ameaça. E o Estado brasileiro não pode admitir isso”, defende Mãe Baiana. Integrante da Rede de Saúde Afrodescendente (Renafro), a religiosa também espera uma ação mais efetiva de saúde pública nos terreiros em 2016. “Os agentes de saúde dizem que não podem entrar no terreiro porque a religião deles não permite. Agora a religião deles permite que o mosquito da dengue pique nossos filhos, pique nosso povo e bote em cima de uma cama? A dor que é lá é cá, o mosquito que pica lá pica cá.”
Além da saúde pública, outro campo de batalha das mulheres negras é a educação e o trabalho. As cotas nas universidades foram consideradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, mas os estudantes negros ainda sofrem preconceito de colegas e professores nos campi universitários.
O governo determinou cotas nos concursos públicos, mas alguns juízes têm dado sentenças contrárias a essa política. Empresas assinam termos de ajustamento de conduta com o Ministério Público para garantir a diversidade em seus quadros e cargos de chefia, mas seguem com o padrão estético branco como pré-requisito de conceitos como credibilidade e boa aparência.
Diante desse contexto, o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) atua para tentar garantir equidade no mercado de trabalho e no acesso à justiça. A doutora em Psicologia Cida Bento está à frente desse projeto e, por meio dele, já recebeu reconhecimento internacional. Foi considerada pela revista The Economist uma das cinquenta profissionais mais influentes do mundo no campo da diversidade.
“Nossa estratégia é fomentar o debate público, ao ampliar e compartilhar perspectivas e informação (vídeos, publicações, encontros) para fortalecer vozes, disseminar questões e ampliar a incidência das ações, particularmente no âmbito das políticas públicas”, aponta Cida.
“Este momento é rico, fértil e desafiante, e construir uma verdadeira solidariedade entre nós, mulheres negras, é o grande desafio. Saber costurar o convívio e a ação conjunta entre as do ‘nosso grupo’ e as que ‘não são do nosso grupo’. Solidariedade tem de ser o coração de nossa ação, como nos ensinou Lélia Gonzalez.”
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*Daniela Luciana da Silva e Juliana Cézar Nunes são jornalistas e integrantes da irmandade Pretas Candangas e da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF).
Ilustração: Marcelo Casal/Agência Brasil
Fonte: diplomatique
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