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terça-feira, 21 de outubro de 2014

O risco de um retrocesso na luta antirracista


Independente das limitações do governo atual, não há como descartar que foi este governo que abriu estas possibilidades de discutir abertamente a temática racial e se pensar propostas. Historicamente, a direita tem atuado no sentido de simplesmente negar o racismo e interditar o debate

Por Dennis de Oliveira*,
Os doze anos de governo do Partido dos Trabalhadores possibilitaram vários avanços institucionais na luta contra o racismo. A primeira lei promulgada pelo então presidente Lula, em 2003, foi a Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História da África, Cultura africana e afrobrasileira como tema transversal nos currículos do ensino básico. Esta lei foi regulamentada por uma resolução do Conselho Nacional de Educação em 2004 que instituiu as Diretrizes Curriculares para a Educação Etnicorracial, elaborado pela professora Petronilha Silva, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Esta lei altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, portanto, tem força normativa nos conteúdos curriculares obrigatórios da educação básica brasileira.

O movimento negro comemorou esta vitória, principalmente porque estava em curso a discussão do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (I Planapir) que, entre outros, tem como um dos principais objetivos desenvolver uma consciência multiétnica na sociedade brasileira. A partir deste objetivo, as políticas de igualdade racial foram se espraiando por diversas outras políticas públicas, no campo da saúde, cultura e educação. Não se tratava apenas e tão somente de políticas de promoção social, mas de criar mecanismos de reconhecimento do racismo e medidas institucionais de combatê-lo no plano institucional e ideológico. E foi justamente neste segundo tópico que a coisa pegou.

Os avanços institucionais foram crescendo – cotas raciais, Estatuto da Igualdade Racial, cotas no serviço público, entre outros – entretanto, à medida que isto ia acontecendo, o pensamento racista foi saindo dos armários e se mostrando cada vez mais intenso.

A primeira gritaria foi contra as cotas raciais. Os argumentos dos anti-cotas iam no sentido de que tal medida feria a igualdade entre os cidadãos, pressupondo que o vestibular selecionava os melhores e que a ausência de negros e negras nas universidades públicas devia-se a problemas no ensino básico público. Por sua vez, a ausência de estudantes negros e negras, oriundos do ensino básico público, nas grandes universidades não mobilizava estas instituições para contribuírem – seja na formação de pessoal especializado e de qualidade, seja na produção do conhecimento – para a melhoria do ensino básico público. Forma-se, assim, um ciclo vicioso.

Ciclo vicioso demonstrado também pelos estudos do Ipea, coordenados pelo pesquisador Ricardo Henriques, que revela que a diferença entre brancos e negros em todos os indicadores tem se mantido a mesma nos últimos 50 anos. Em outras palavras, o debate sobre cotas e ações afirmativas demonstrou a necessidade de implantar-se cotas e ações afirmativas. A presença de um magistrado negro no Supremo Tribunal Federal – Joaquim Barbosa – foi fundamental para a decretação da constitucionalidade das cotas, que abriu caminho para a sua implantação nas universidades federais.

Ato seguinte, com a formação de profissionais qualificados negros e negras nas universidades públicas, gerou-se o problema da inserção dos mesmos no mercado profissional. A partir disto, discutiu-se e foi aprovado a medida que implanta as cotas no serviço público.

E várias outras medidas foram sendo aprovadas, no campo da cultura (com editais específicos para a cultura negra), saúde (programas de atendimento a saúde da mulher negra) e livros didáticos (a preocupação com os estereótipos raciais em livros didáticos adotados na escola pública).

O Censo da Educação Superior de 2011, produzido pelo Ministério da Educação (MEC), apontou que, entre 1997 e 2011, o percentual de negros e negras no ensino superior passou de 4% para 19,8%, isto é, em torno de 13 milhões de jovens negros de 18 a 24 anos estão nas faculdades.

Esse número é superior ao de negros e negras que estão nas universidades nos Estados Unidos, país que sempre é referência quando se discutem ações afirmativas para afrodescendentes. Lá, são 3 milhões, ou o equivalente a 13,8%. Entretanto, os EUA praticamente igualaram o percentual de negros na população (14%) com o de participantes no ensino superior. Aqui, a disparidade é muito maior, pois o percentual de negros na população brasileira é superior a 50%.

Além da disparidade proporcional que demonstra que, não obstante os avanços, ainda há muito o que fazer, há um problema estrutural: esta inserção no ensino superior deu-se pelas universidades privadas.

O aumento da participação de jovens negros e pobres no ensino superior se deve ao ProUni (que tem cotas para alunos negros e vindos do ensino público) e ao aumento da oferta de vagas em universidades públicas localizadas nas regiões mais pobres do País.

Porém, a expansão do ensino superior privado, incrementada de forma intensiva no governo de Fernando Henrique Cardoso, sob a batuta do ex-ministro da Educação Paulo Renato de Souza, ainda é um problema. Hoje, 72% dos alunos do ensino superior estão nas instituições privadas (esse percentual pouco mudou apesar da expansão da oferta de vagas no ensino público). O ProUni possibilitou a capitalização das universidades privadas ao dar uma garantia de que as mensalidades serão pagas, mesmo que por alunos trabalhadores que sofrem sempre com as instabilidades do mercado de trabalho.

Hoje, há um enfrentamento político das instituições privadas de ensino, cada vez mais concentradas em grupos monopolistas de capital transnacional (como o Laurentis e o Crotton) e o governo. A pauta deste enfrentamento: a fiscalização e a regulação – enquanto que o governo procura aperfeiçoar os mecanismos regulatórios, as empresas de ensino pressionam para desregulá-lo. E mobilizam, muitas vezes, corações e mentes dos seus alunos (negros e trabalhadores) para as apoiarem nesta batalha, sob o risco dos diplomas serem invalidados.

Ao mesmo tempo, recrudescem práticas racistas mais intensas nos meios de comunicação de massa – como, por exemplo, a série O sexo e as Nêga, da Globo, que reforça os estereótipos machistas e racistas contra a mulher negra, sem contar os programas de humor –, a intolerância e agressões contra as religiões de matriz africana e o genocídio da juventude negra demonstrado com o crescimento de assassinatos de jovens negros em todo o Brasil.

Tudo isto coloca a temática racial em um impasse: a medida que as práticas racistas se exacerbam, ao lado das políticas de inclusão racial; fica o debate ideológico mais acirrado sobre qual modelo de sociedade brasileira se quer. Uma demanda que se coloca de forma imediata para o movimento negro que precisa, urgentemente, sair da agenda meramente institucional e se capacitar para o enfrentamento ideológico. A polarização das eleições presidenciais é um exemplo marcante disto. Independente das limitações do governo atual, não há como descartar que foi este governo que abriu estas possibilidades de discutir abertamente a temática racial e se pensar propostas. Historicamente, a direita tem atuado no sentido de simplesmente negar o racismo e interditar o debate – e, se isto acontecer, será um retrocesso enorme para a luta anti-racista.

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(*) Dennis de Oliveira é professor da Universidade de São Paulo, colunista do Portal Fórum no blog “Quilombo” e coordenador do Quilombação (Coletivo de Ativistas Antirracistas)

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