“o reclame é também pelo enfrentamento da máxima da morte e da subordinação como o único destino dos produtos gestados pelos úteros de mulheres negras”
por Ana Luiza Flauzina*,
Foi num 28 de setembro. Em seu gabinete, conta-se que a princesa branca assinou a lei que garantiria a liberdade à prole das mulheres negras. Numa canetada, a história sedimentou a narrativa da passividade feminina branca, na imagem de Isabel como uma peça de sensibilidade no jogo politico masculino, e da subalternidade feminina negra, na projeção das mulheres escravizadas como destinatárias desta dita generosidade.
Apropriada pela resistência feminista na década de 1990, a Lei do Ventre Livre passou a ser um marco na luta pela descriminalização do aborto. O simbolismo parece oportuno para a demanda inadiável da autodeterminação dos corpos. Um reclame legítimo ecoado solidariamente por mulheres de todas as cores, classes e orientações sexuais, para que o dizer sobre suas escolhas seja exercido na primeira pessoa. Uma tentativa de se frear as perversas pautas do sexismo que tem, em nome dos discursos distorcidos da defesa à familia e à vida, gerado violações que vão dos estupros sistemáticos aos feminicídios tolerados, passando pelas esterilizações e mortes produzidas em abortos clandestinos e inseguros.
Se é legitimo afirmar que o conteúdo desse cenário de dor tem significado coletivo, a hegemonia dos feminismos brancos parece recuperar a imagem da Princesa no alto de sua condescendência com os corpos negros. No desenho dessa faceta contemporânea, há uma espécie de apropriação seletiva do simbolismo da Lei do Ventre Livre, numa miopia frente aos arroubos do racismo.Aqui, é importante lembrar que, no Brasil, são as mulheres negras em seu esforço de resistência contra a escravidão, que exercitaram o direito de escolha de forma mais contundente na politização do aborto. Naquela conjuntura, o aborto era a negação máxima dos estupros autorizados e encorajados, e das práticas de violação sexual brutais pintadas como miscigenação pacífica. Abortos que desafiavam a noção de uma existência animalizada como a única alternativa à disposição de todo um contingente populacional.
Findada a escravidão formal, o racismo tem manipulado o aborto como um dos principais ingredientes a saciar seu apetite genocida. O imaginário, de que partilham nomes que vão de Monteiro Lobato a Sergio Cabral, situou a esterilização e morte de mulheres negras – em grande parte alcançada pela gestão de abortos insalubres – como um aporte fundamental para o desencadear das celebradas políticas de extermínio.
Os úteros negros passam de meros incubadores da mão-de-obra escravizada, para reprodutores de supostos criminosos natos, destinados a morrer nessa guerra intensa travada contra a juventude negra nesse país. Em seus sonhos mais reservados, o controle dos úteros negros está, portanto, no centro da engenharia genocida no Brasil.
Um controle que sinaliza claramente não só para a produção em série de mortes de mulheres desasistidas na prática do aborto, como para a naturalização das mortes dos que deles provêm.
Nessa tônica, a “libertação dos úteros” preconizada pelos feminismos negros apontam para dimensões que ultrapassam os limites das reivindicações usuais em torno do aborto. Para esse contingente, o ventre livre significa não só a capacidade de exercitar direitos reprodutivos de forma autônoma, como também de reclamar o direito à vida e à liberdade para os que foram nele nutridos. Nas promessas vazias que se reeditam desde a promulgação da lei assinada pela Princesa, o reclame é também pelo enfrentamento da máxima da morte e da subordinação como o único destino dos produtos gestados pelos úteros de mulheres negras.
Assim, se a apropriação da Lei do Ventre Livre como marco simbólico para as reivindicações pela descriminalização do aborto indica solidariedades contra o patriarcado a serem celebradas, sua desarticulação do genocídio sinaliza apropriações indébitas que deixam intactas as dimensões da supremacia branca que desumanizam. O enfrentamento do terror sexual sem o comprometimento com a desarticulação do terror racial, conduzem a projetos feministas forjados à imagem e semelhança de Isabel, tanto em sua vulnerabilidade do sexismo que aproxima, quanto na imposição do racismo que aparta.
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*graduada em Direito e História, com especialização em Criminologia, mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e doutorado em Direito pela American University (EUA)
Artigo originalmente publicado no Correio Braziliense, em 26/09/2014
Fonte: pretascandangas
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