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terça-feira, 14 de outubro de 2014

“Hoje nasci negro”: Vítima de racismo, jovem apanha de seguranças em festa da USP



“Olha aqui seu negrinho de merda, a coisa vai ficar feia pra você”, ouviu João Henrique Custódio do segurança que o agrediu durante a abordagem da polícia; Confira o relato 

Por Ivan Longo, 
O estudante João Henrique Custódio, 30, negro e homossexual, até a noite da última sexta-feira (10) dizia nunca ter sido alvo de racismo. Naquela noite, entretanto, Custódio julga ter “nascido negro” pelo fato de, pela primeira vez, a cor de sua pele ter lhe causado problemas. O jovem relata ter sido espancado por seguranças de uma festa organizada pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP.

Em relato que redigiu após o ocorrido, o estudante conta que estava no apartamento de um amigo na região central com seu companheiro e mais um grupo de pessoas quando perceberam que estava havendo uma festa na rua, na região do Largo São Francisco. Acreditando ser mais uma das festas grátis no espaço público que vêm ocorrendo em São Paulo, os amigos decidiram descer e participar do evento.

O largo São Francisco estava gradeado e com uma passagem para pedestres. De acordo com Custódio, não havia qualquer sinalização de que aquela era uma festa fechada. Ele, então, junto com os amigos, adentrou ao evento pela passagem. Poucos passos depois, no entanto, o estudante se viu sozinho e, quando olhou para trás, avistou os amigos o acenando para voltar com uma pulseira na mão – que seria, na verdade, a pulseira que dava o direito de entrar na festa. Antes que desse tempo de chegar aos amigos, no entanto, João recebeu, por trás, uma chave de braço de um segurança. Outros dois seguranças se juntaram na abordagem e, aos socos e pontapés, expulsaram o jovem da festa.

Já do lado de fora, os seguranças teriam se identificado como policiais e ameaçaram o grupo de amigos, dizendo que se chamassem a polícia “coisas graves iriam acontecer”. A polícia chegou e, segundo Custódio, um dos seguranças foi falar com um PM que estava sozinho atrás de uma viatura com uma prancheta. João foi atrás para assegurar que o segurança não dissesse nenhuma inverdade quando o mesmo disse para jovem: “Olha aqui, seu negrinho de merda. A coisa vai ficar feia para você”.

O jovem, que é estudante de Ciências Sociais da USP, foi encaminhado para o 8º DP do Brás e só lá foi informado que aquele evento era uma festa da Faculdade de Direito. No local, foi aberto um Boletim de Ocorrência e depois Custódio foi encaminhado para fazer um exame de corpo de delito. 

O jovem conta que a PM não pediu os documentos dos seguranças e que apenas anotou seus nomes de maneira informal.

Centro Acadêmico 

O Centro Acadêmico XI de Agosto, por sua vez, divulgou uma nota sobre o caso no sábado (11), desmentindo toda a narrativa relatada por João. De acordo com o órgão, testemunhas teriam presenciado que membros do Centro Acadêmico teriam tentado explicar ao jovem que aquela era uma festa paga e que ele não poderia permanecer ali. Eles negam que tenha havido agressão por parte dos seguranças e afirmam que quem agiu violentamente foi o próprio jovem, que teria, inclusive, mordido um dos seguranças.

Nenhum desses seguranças, entretanto, de acordo com João, prestou depoimento na polícia ou mesmo realizou exame de corpo de delito. Na nota do Centro Acadêmico também não há menção ao nome de nenhuma das supostas testemunhas que poderiam confirmar a versão contada pelo órgão. Já o estudante cita, em texto que escreveu em resposta à nota do CA, todos os amigos que estavam com ele no momento do episódio e que confirmam as agressões.

João aguarda, agora, o resultado do exame do corpo de delito para dar continuidade ao processo.

A nota do Centro Acadêmico XI de Agosto e a resposta do estudante podem ser conferidas aqui.

Procurada pela reportagem do SPressoSP, o Centro Acadêmico não ainda não deu retorno sobre o caso, até o fechamento desta matéria.

Leia abaixo, na íntegra, o relato de João Custódio sobre o ocorrido.

Hoje nasci negro 
Ao tentar compreender tudo o que aconteceu comigo nas últimas 12 horas, ainda custo a acreditar. O meu corpo dói enquanto escrevo, uma dor física e psíquica, uma amálgama de medo e revolta. O meu corpo todo treme, como se ainda estivesse recebendo socos e pontapés, resisti as várias tentativas de me desumanizar.


Entre amigos, todos brancos, sempre fui indagado por eles, se se na minha vida eu havia sofrido alguma violência policial, por ser afro-descendente. Eu, sinceramente, nunca entendia o porque da pergunta. Internamente me perguntava: será que todo afro-descendente passa por esse questionário com seus amigos brancos? O racismo policial seria um fato social com todos os afro-descendentes ou meus amigos me viam como uma espécie rara diante deles, e que por ser tão rara vive situações incomuns, estruturalmente desigual, e por isso a curiosidade? Não, eu nunca cometi um crime, eu dizia, e também nunca fui abordado por nenhum policial, pelo contrário, sempre que necessitei de auxilio eles sempre foram, na medida do possível, cordiais. Agora, com o meu corpo tremendo, começo a sentir na carne os vários sentidos que aquela pergunta assume para um afro-descendente.


Estava me refazendo de problemas pessoais e recebi o convite de um amigo para nos reunirmos em seu apartamento com outros amigos, para relaxarmos. Ele havia se candidatado a deputado estadual pela primeira vez e essa semana a vida dele voltara à normalidade. Na reunião todos já se conheciam de outras ocasiões e montamos um debate do qual todos ali presentes eram candidatos jocosos do pleito pretérito.

Da varanda do apartamento, no 25º andar, a música alta vinda da região do Largo São Francisco nos fazia um convite de descer e estender a reunião. Diante do fim do nosso debochado debate, revolvemos seguir o som. Caminhamos poucas quadras e ao chegarmos havia grades fechando a passagem nas calçadas e na rua, com um único local de passagem aberto para pedestre, no meio da rua. Não havia placas indicando o porquê do fechamento da via pública e também não fui inquirido por ninguém ao entrar. Não havia muita gente, caminhei em direção a multidão. Há muito tempo não saía, estava estudando e com problemas de saúde na família, a música me lembrava do ano que entrei na faculdade, várias lembranças boas me vieram a memória. Então, me virei para trás para ver meus amigos e dizer o que sentia, mas estava só de longe. Perto da entrada vi um deles com o braço levantado com uma pulseira verde sinalizando que eu devia voltar, provavelmente para pegar a pulseira, imaginei.


Caminhei poucos passos, por trás levei uma chave de braço, tentei me soltar e comecei a levar vários socos próximos da minha bacia e nas costelas, e chutes nas pernas. Não entendia nada, só sentia os golpes, pensei que se caísse no chão eu poderia ser morto com chutes na cabeça, fiz o maior esforço físico para não cair.


Lembrei dos skinheads e imaginei que poderiam ser eles, pois sou gay, tenho parceiro, ele estava ali tentando me ajudar. Eu ouvia várias vozes de pessoas, e não conseguia identificar. “Não bata nele!” “Largue o menino!” Fui arrastado e golpeado várias vezes até a grade que dividia a rua. Largaram-me lá, ergui meu corpo para ver meus algozes, vi o rosto deles mesmo sem óculos e eles não eram skinheads, eram três seguranças, três homens grandes, muito grandes comparados aos meus 58 quilos. Olhei para eles com tanta raiva mas me silenciei, não tinha força para fazer nada e eu sabia que aquilo era só o começo, eu não poderia cair.


Eu andei com muita dificuldade até a esquina da rua Senador Feijó, de lá liguei para polícia. Meus amigos conversaram com várias pessoas e elas os alertavam sobre o risco de chamar a polícia, pois um dos meus agressores era um policial fazendo “um extra”, como segurança da festa. Os meus amigos se dividiram diante da ameaça, eu vi nos olhos deles o medo, eu me perguntava: por que eles estão com medo? Eu não posso ter medo! Quanto mais a policia demorava a chegar mais meus amigos se desesperavam, o agressor “policial” procurou meus amigos e ameaçou-os dizendo: “ se chamar a polícia coisas graves acontecerão”.


Suportei todas as ameaças e deixei meus amigos livres para irem embora, o risco de ficar ali era meu e não deles, mas eles não me abandonaram.


A polícia chegou, e começou uma profusão de versões de pessoas que nem alia estiveram, o suposto policial procurou um soldado que estava distante da confusão e sozinho. Eu o segui, se ele queria persuadir os policiais para tornar tudo “pizza”, eu queria ouvir. Ele tentou me intimidar diante do policial me chamando de “neguinho você é um merda”, outros policiais surgiram e ele se escondeu atrás da grade.

Os PMs me disseram que nada poderia ser feito, que eles iriam me levar para a delegacia e eu iria registrar um boletim de ocorrência, e depois iria ao IML, na delegacia descobri que a festa foi produzida pelo Centro Acadêmico XI de agosto, da Faculdade de Direito-USP.


Começo a sentir na carne os sentidos daquela pergunta dos meus amigos, o racismo não está somente na PM, como o senso comum costuma indagar, o racismo está nas microrrelações, nas reentrâncias do dito e não dito, em todos os lugares públicos ou privados em que não há negros ou pardos ou, quando lá eles estão, eles são subalternos. Nos acostumamos ver a uma empregada negra ou um segurança negro, mas “estranhamos” ver um médico negro, a ausência de afro-descendentes denuncia a nossa exclusão e o quão nossa sociedade é sim racista. O racismo estrutura todas as relações sociais, ele dá direitos e os nega, constitui os cidadãos plenos do “neguinho” , quem pode pagar e quem não pode, e, nesse caso, o nosso racismo adquire outra forma. Não está na pele e no fenótipo, ele está na roupa, no seu perfume, nos vocábulos, ele está no seu bolso.
Por isso eu nunca fui abordado por um policial, pois para eles eu sou branco de classe media. Ouvi dos PMs “você e seus amigos são pessoas de bem só de olhar dá para ver, a lei estará do lado de vocês (sic)”. Os soldados classificaram eu e meus amigos como “ pessoas de bem”, para os policiais eu sou uma pessoa de bem, visto que sou branco de classe média, assim como os meus amigos que, de fato, são brancos e também de classe média. No meu boletim de ocorrência, o escrivão não me perguntou a minha cor porque, para ele, a minha cor já estava dada pela minha classe social, e por ser de classe média eu sou branco, e não negro.


Mas por que, então, os seguranças da festa “Cervejada do Peru”, promovida pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, agrediram-me de forma tão vil? Por que eles não viram como “branco” de classe média? Por que não conversaram comigo como fizeram com os meus amigos brancos? A resposta talvez esteja dentro da Faculdade de Direito USP e no seu Centro Acadêmico que possui, segundo a FUVEST, em 2014, 16,4% de pardos e 4,5% pretos, ou seja, os seguranças da festa me identificaram como negro e, portanto, um intruso em lugar de maioria branca, que por não estar no seu devido lugar, fora dali, deve ser removido com força desmedida, para que aprenda o seu lugar de direito, já que eu para eles não possuo humanidade nem diretos e deveres.


Se eu pudesse responder a todos os meus amigos que fizeram aquela pergunta, eu diria a eles que o racismo está nos olhos, na forma como sobredeterminamos o mundo. Hoje nasci negro!

Fonte: spressosp

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