por Larissa Santiago,
Estamos prestes a sair às ruas na II Marcha (Inter)Nacional contra o Genocídio do Povo Negro. Os dados são contundentes e os argumentos, os mais diversos. Se você não for negro, provavelmente não estará nem aí para um “bando de preto” marchando e interrompendo o trânsito no próximo dia 22 de agosto. Mas você com certeza segurará sua bolsa, desviará do mendigo ou evitará passar perto de uma favela depois das 21h. Já se perguntou porquê? Apois, então se pergunte.
E antes de pensar em xingar e berrar aos quatro ventos “vão trabalhar e parem de atrapalhar o trânsito” (oh, o deus trânsito!), vou lhes contar uma história recente, de uma cidade mágica chamada Salvador. Há mais ou menos um mês, dois policiais à paisana foram mortos na cidade. Um no bairro da Liberdade e o outro numa garagem de transportes na Estrada Velha do Aeroporto. Segundo consta, os dois teriam sido vítimas de bandidos que os identificaram um por portar sua arma e o outro por ter sido reconhecido no assalto.
A partir de então uma série de mortes, desaparecimentos e sequestros ocorreram, totalizando (até agora) 5 jovens desaparecidos entre os dias 01 e 05 de agosto. Todos jovens entre 15 e 25 anos, negros e moradores das periferias de Salvador.
O primeiro caso foi o do jovem de 15 anos, morador de Vista Alegre, que foi colocado dentro de um carro mesmo depois de ter mostrado que era trabalhador, exibindo seu crachá de servente em uma empresa. Levado até a Estrada do CIA (Região Metropolitana de Salvador), foi espancado e torturado. “Ele levou coronhadas e está vivo porque a pistola de um dos bandidos falhou. Então decidiram deixá-lo na Lagoa da Paixão”, contou um dos seus amigos.
Enquanto isso, um outro rapaz, cobrador de van, era jogado dentro do mesmo palio. Ivo Rangel estava conversando com duas amigas quando foi sequestrado. “Se eu tivesse visto, não deixaria que levassem meu filho”, contou a mãe, em lágrimas. Um dia depois, seu corpo foi encontrado na Estrada do CIA, amarrado, amordaçado e com vários tiros.
Na mesma semana, Giesson Vieira, de 17 anos, saiu pra comprar pão no seu bairro (Paripe) e não voltou pra casa. Segundo seus amigos, três homens o abordaram e o arrastaram para dentro de um gol vermelho. Na manhã seguinte, seu corpo foi encontrado amordaçado e amarrado no lixão de Periperi. Na mesma noite, seria a vez de Weslei Silva, de 21 anos. Esse foi tirado de casa por três homens que também chegaram num gol vermelho. “Arrombaram a porta, diziam que eram policiais e levaram meu filho. Ele trabalhava como repositor na Boticário”, contou sua mãe. Seu corpo foi encontrado também na manhã seguinte, no bairro do Lobato.
Nem todos os casos apareceram na mídia (óbvio), mas de todos esses, o que teve mais repercussão foi o do jovem de 22 anos. Geovane Mascarenhas de Santana desapareceu no último dia 02 de agosto, depois de uma abordagem feitas por policiais da Rondesp (Rondas Especiais da Polícia Militar da Bahia) na Calçada (bairro da cidade baixa de Salvador). Um vídeo, gravado por um morador, registrou a abordagem em que o jovem, já com as mãos para trás é espancado – levando dois tapas e um chute – por dois policiais, enquanto um terceiro aponta uma pistola para sua cabeça. Depois disso, ele é colocado no porta malas da viatura, tendo sua moto (até agora não encontrada) dirigida por um outro policial. Depois disso, Geovane desaparece.
“Não durmo nem como direito. É uma angústia muito grande não saber o que houve de fato com meu filho.” São as palavras de Seu Jurandy, comerciante de 40 anos, pai de Geovane.
Desde então sua peregrinação em busca do paradeiro de seu filho tem sido frustrante, cansativa e sufocada pelos veículos de massa do Estado. Depois de depor várias vezes e ouvir várias versões dos policiais e delegados, Seu Jurandy foi pela 8ª vez (oitava, entenderam?) no Insitituto Medico Legal Nina Rodrigues para finalmente reconhecer parte do corpo de Geovane. Segundo a polcícia, sua mão foi encontrada num terreno baldio em Campinas de Pirajá, o que dá indícios de que o jovem foi esquartejado.
No último dia 19/08, foi confirmado por exame de DNA que se trata mesmo de Geovane. O corpo, sem a mão e a cabeça, foi encontrado carbonizado no Parque São Bartolomeu, na madrugada do dia 03.
Cansado, humilhado e revoltado, Seu Jurandy desabafou a um jornal da capital: “Pelo menos essa dor vai passar. Vou enterrar dedo, pé, o que me derem.(…) A gente nunca imagina que uma pessoa vai fazer uma crueldade dessa com o filho da gente. Vamos à luta. Meu pai enterrou os filhos lá (em Serra Preta, município perto de Feira de Santana), lá tem a carneira da família. Não vou querer enterrar meu filho aqui. Muita dor, muita crueldade…”
Geovane será enterrado, mas sua dor não será esquecida, Seu Jurandy. Os policiais responsáveis estão presos – o subtenente Claudio Bonfim Borges e dos soldados Jailson Gomes de Oliveira e Jesimiel da Silva Resende que fizeram a abordagem. Mas a gente sabe bem com isso funciona. A violência não tem fim. Tanto não tem que continua a ameaçar jornalistas e o morador que gravou o episódio (esse, já se mudou, depois de observar um carro preto rondando sua casa).
Por isso e contra o Genocídio, Marchamos.
O CASO BROW
Mas provavelmente você conhece mais Mike Brown do que Geovane ou Giesson. Isso porque a violência policial contra Michael Brown, 18 anos, aconteceu logo ali em Ferguson.
Mike, que ia começar suas aulas na universidade nessa segunda-feira, foi abordado por dois policiais e, segundo as várias versões, teria se recusado a subir na calçada e foi baleado e morto. Dizem ainda que ele teria reagido a abordagem, tendo lutado com um dos policiais na tentativa de tomar sua arma. Mas testemunhas contam que o jovem levantou as mãos, como sinal de que estava desarmado e que os vários tiros o atingiram pelas costas. E aí então a reação foi imediata. Hoje, Ferguson está em toque de recolher, com as pessoas indo pra casa às 21h e só podendo sair às 5h da manhã, decreto que os manifestantes (é claro) não estão cumprindo.
E a gente compreende que a reação nunca acontece do nada.
Sabe-se que dois terços da população de Ferguson é de negros, com 25% dessas pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Além disso, ultimamente a tensão entre a polícia e a população só tem aumentado. É fato que a morte de Brown gerou uma onda de rancor e ira acumuladas durante muito tempo, pela frequente discriminação racial das forças de segurança estadunidenses. Terry Jones, professor de Ciência Política e Políticas Públicas da Universidade de Missouri – St. Louis, explica que “não são incomuns” em Ferguson e em outras cidades-dormitório na região de Saint Louis os protestos pacíficos da comunidade negra para denunciar a discriminação racial nas ações policiais e no mercado de trabalho.
Só a título de informação, dos 53 policiais de Ferguson, apenas 3 são negros e é esse o mosaico racial que representa uma comunidade de maioria negra. Depois da morte de Mike, saques, depredações e confrontos com a polícia geraram até hoje mais de 30 presos e uma imagem de guerra que tem tomado conta dos noticiários de TV, com tanques e policia especial nas ruas da cidade.
“A Polícia de Ferguson acaba de executar meu filho”. “Um garoto doce, que não dava problemas” e que “não desejava fazer mal a ninguém”. São as palavras do padrasto e da mãe de Brown. Sua comunidade está em vigília e as fotos nas redes socais mostram o apoio ao jovem negro, vítima de um genocídio estrategicamente pensado, resquício de um sistema montado que parece impossível de ser desmantelado. Michael Brown está mais perto de você através dos noticiários, e isso te torna mais sensível.
Por isso e contra isso, Marcharemos!
Morremos todo dia. Me lembro como se fosse hoje de Amarildo. Não consigo esquecer de Cláudia. Lembro também de Trayvon, e por conta de Brown, me lembrei esses dias de Mark Duggan: o jovem de 29 anos que foi morto pela polícia metropolitana de Londres, por suspeita de retaliação da morte de seu primo. Após os protestos pacíficos capitaneados por sua família e vizinhos – cobrando da polícia esclarecimentos sobre a morte de Duggan – o dia 6 de agosto de 2011 marcou o início de conflitos generalizados entre a população negra da Inglaterra e a polícia.
Me lembro que a notícia ganhou os noticiários do mundo, quando os conflitos se espalharam por Bristol, Mindlands e para outras cidades do nordeste do país. A mídia esqueceu de Duggan e passou a atacar o comportamento da população, ignorando os anos crise socio-econômica e os cortes dos investimentos em políticas sociais do país. Me lembrei dos jovens pixadores Alex Dalla Vecchia Costa e Ailton dos Santos (ambos mortos por motivos ainda não esclarecidos). E de tantos outros amigos de infância, de escola, mortos e presos vítimas do jogo de interesses opressor e humilhante que é a violência policial.
Por elas e por eles, Marcharemos!
E não se engane: a violência e o racismo institucional estão em todo lugar. Aqui ou lá, com execuções sumárias, esquartejamentos e ocultação de cadáveres – sempre vitimando negros, mortos sem julgamento, sem enterros dignos, sem agilidade na justiça e sem oportunidade dos pais e familiares dormirem em paz. Sem sua atenção e muito menos a atenção das políticas do Estado. E não venha me dizer que aqui não temos problemas raciais. Que não há racismo institucionalizado do lado de cá. Porque se isso não é genocídio, racismo e preconceito, não sei o que é.
Não se deixe enganar. E caso se engane, estaremos marchando, atrapalhando seu trânsito, pra te lembrar que o gesto involuntário de segurar a bolsa e o apressar do passo é uma gota significativa no oceano do racismo.
#ContraoGenocídiodoPovoNegro
REFERENCIAS
Caso Brown
- http://brasil.elpais.com/brasil/2014/08/13/internacional/1407888186_354469.html
- http://www.afropunk.com/video/mikebrown-mass-incarceration
- http://www.vaiserrimando.com.br/policia-mata-jovem-negro-populacao-protesta-cidade-dos-eua-zona-de-guerra/
- http://www.theguardian.com/commentisfree/2014/aug/18/ferguson-violence-martin-luther-king-michael-brown
- http://brasil.elpais.com/brasil/2014/08/12/internacional/1407812545_405305.html
Geovanne
- http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/vou-enterrar-o-que-me-derem-diz-pai-de-geovane-depois-que/?cHash=bbbf22483aae15a823f3069d448360ac
- http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/exame-de-dna-confirma-que-corpo-no-iml-e-de-geovane/?cHash=3e72f61e765316f8ede7f898027cd8e6
- http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/pai-descobre-que-filho-foi-levado-por-pms-e-desapareceu-apos-abordagem/?cHash=aeb130f0a47cd1ee64f289c03593889c
Policiais
- http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/07/enterrados-corpos-do-policial-civil-e-pm-mortos-apos-assaltos-em-salvador.html
- http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/07/dois-policiais-sao-reconhecidos-e-mortos-durante-assaltos-em-salvador.html
Caso plataforma
- http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/08/familiares-fazem-protesto-por-morte-de-jovem-no-bairro-de-plataforma.html
Caso alto de coutos
- http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/quinto-jovem-sequestrado-no-suburbio-e-solto-na-rodoviaria-diz-familia/?cHash=e6770a27dc292373d0919642cc283156
Mark Duggan
- http://pt.wikipedia.org/wiki/Assassinato_de_Mark_Duggan
Alex e Ailton
- http://www.vaiserrimando.com.br/policia-mata-dupla-pichadores-assassina-verdade/
Imagem de destaque – http://reajanasruas.blogspot.com.brAcompanhe nossas atividades, participe de nossas discussões e escreva com a gente.
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Larissa é baiana e escreve no Mundovão e no Afrodelia.
Fonte: blogueirasnegras
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