Páginas

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Escola, Racismo e Negritude – Negar não resolve nada. Enfrentemos!


Não adianta pintar de branco o pé da árvore,
a força da casca por baixo grita.
(Aimé Césaire)

Professoras e professores da rede estadual de ensino deparam-se cotidianamente com situações de conflito no espaço escolar, que embora incidam diretamente na aprendizagem não parecem originar-se do processo de ensino-aprendizagem em si. São situações anteriores que se capilarizam para dentro do universo escolar, sem que muitas vezes se tenha instrumentalização para percebê-las ou intervir nas mesmas.

O desafio vivenciado cotidianamente por cada educadora e educador traz em seu bojo, em alguns momentos de maneira sutil em outros de maneira violentamente explícita todo o impacto do racismo no desenvolvimento das relações no espaço escolar, seja a partir da percepção que as/os educandas/os tem de sua negritude, seja na percepção que têm da negritude da/o outra/o. Partimos aqui da perspectiva de que é necessário desenvolver ações que possibilitem as/aos educandas/os acesso a elementos que lhes instrumentalize no processo de re-significação de sua percepção de Àfrica e assim de afrodescendentes, incidindo diretamente na elaboração positiva da identidade Negra.

O cotidiano das relações nas escolas, quando observado com mais cuidado, aponta que embora institucionalmente invisibilizada a violência que é relacionada a práticas discriminatórias resultantes das pré-concepções quanto a raça, estão presentes e se mostram evidentes. Fato comprovado, a presença e muitas vezes preponderância de população negra na escola não institui uma relação de equidade dentro desse espaço; longe disso, reproduz a lógica de discriminações de uma cultura hegemônica, machista, sexista, branca, adultocêntrica, vivenciada nas relações sociais.

O racismo é realizado por formas complexas, não sendo admitido conscientemente pelas figuras que o exercem, sendo comum a negação de qualquer forma de discriminação. Aqui entendemos racismo conforme a definição sugerida por Kabengele Munanga em Uma abordagem conceitual das noções de Raça, racismo, Identidade e Etnia:

“(…) o racismo é uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural, (…) o racismo é essa tendência que consiste em considerar que as características intelectuais e morais de um dado grupo, são consequências diretas de suas características físicas ou biológicas.” Nesse contexto, as práticas observadas na escola estão marcadas e determinadas pelo racismo expressado e vivenciado na sociedade brasileira em geral, racismo esse que se manifesta na percepção de brancos/as e negros/as tem da negritude.

Ao emergirem os conflitos, via de regra a posição escolar reproduzindo a sociedade, sempre se dá a afirmação da igualdade, negando a existência da diferença apesar da adoção de práticas ostensivas de diferenciação sobretudo no que tange aos aspectos raciais e estéticos. Assim é promovida a cultura da violação do Direito à Diferença e à Diversidade e se reproduz no cotidiano as teses de Gilberto Freyre de que há uma harmonia e convivência fraterna entre brancos e negros no Brasil, sendo a raiz das tensões o aspecto social e não o aspecto racial.

Lançar um olhar para os escola, e especificamente para o desenvolvimento das relações entre crianças negras e não negras no ensino fundamental é buscar identificar as múltiplas violências vivenciadas por esses grupos, no exercício de seu protagonismo racial, umas/uns sendo relegadas/os a um lugar menor e ocupando-se de ocupar essa menoridade e outras/os sendo educadas/os para a superioridade.

De acordo com as Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais [1] entende-se nesse contexto que a escola deveria ser um espaço de movimento, trocas, de vida, potencializador da existência a partir da constituição do conhecimento e do circular de saberes (ORIENTAÇÕES p.56).

É na escola que se tem eminentemente um trabalho de grupos, seja de irmãos biológicos que freqüentam a mesma escola, seja de crianças de diferentes famílias que se origina no fato de estarem todas juntas no mesmo espaço partilhando de uma identidade comum: educandas/os. Nesse sentido, não seria exagero pensar a escola como sendo um dos principais espaços onde a convivência com o diferente deveria ser estimulada, valorizada e estruturada de maneira naturalmente equânime a partir de identidades múltiplas que seriam catalizadoras da Diversidade.

ESCOLA E NEGRITUDE

Nos grupos de educandos/as (muitas vezes também compostos por irmãos biológicos) é inevitável a formação interracial, e nesse sentido a violência vivenciada por aquelas/es que apresentam os fenótipos negros mais marcantes é visivelmente superior a dos/das demais, (sendo inclusive discriminados/as pelos irmãos e irmãs, primas e primos de pele mais clara) o uso de expressões como “essa macaquinha não é minha irmã”, “deus me livre ser irmã dessa cabelo de bombril”, “a culpa é desse nego safado” ou “minha mãe não gostava desse neguinho”dentre outras é corriqueiro no cotidiano das relações.

Educandos/as se tornam vítimas dessa mesma violência que afeta seus ideais. Há uma constância da discriminação desses meninos e meninas em espaços públicos e privados a qual termina por fazer aparecer um sentimento de medo e inferioridade que podem prejudicar todos os aspectos de sua vida.

Insegurança, agressividade, angústia e autodesvalorização são algumas características de educandos/as e quando prolongada essa vivência de relações de discriminação, acontecem perdas para o desenvolvimento psicossocial incidindo principalmente na sua capacidade de construir vínculos positivos com outras pessoas.

O estabelecimento dos vínculos, no entendimento de Winnicott (1993) [2] é essencial para o desenvolvimento adequado da personalidade. Segundo o mesmo, por carência de estimulação, de vínculos afetivos e de atenção emocional, a crianças podem ter deficiências cognitivas, deficiência de integração sensorial, dificuldade em processar a linguagem no ritmo que é falada e consequentemente, prejuízo no processo de aprendizado.

Uma relação baseada em práticas discriminatórias, na intolerância a diversidade étnica, na continuidade de divulgação de rótulos discriminatórios, expõe educandos/as a um permanente conflito entre assumir e negar sua identidade.

O relatório Fatores Associados ao Desempenho em Língua Portuguesa e Matemática: A Evidência do SAEB (2003) apresenta a cor/raça dos alunos como um dos fatores que influenciam a proficiência escolar. Dentre as três dimensões identificadas por esse mesmo relatório como condicionantes do desempenho escolar, a raça é apresentada como um dos vetores que integram a dimensão pessoal e sintetiza “experiências de vida que impactam o desempenho dos alunos”. [3]

MESMO FECHANDO OS OLHOS, A VIOLÊNCIA CONTINUA LÁ

As formas mais comuns de expressão de violência com recorte racial dizem respeito a depreciação moral e estética de educandos/as que apresentem fenótipos que os aproximem da ideia que se faz de negritude. Tal fato é muito estruturador das relações e reafirma o caráter do racismo de marca que se vivencia no Brasil.

Educandos/as que apresentam fenótipos que se aproximam de europeus ocupam lugares superiores nas relações estabelecidas e canalizam em si todo o afeto, ideia de beleza e produtividade no contexto escolar: são as referências de beleza, são as rainhas do milho, os/as representantes de turma. Educandos/as que apresentam fenótipo negro ocupam posições menores na dinâmica da sala de aula e escolar e via de regra assumem o lugar da culpa sendo comumente o bode expiatório das relações de grupo (Pichon Riviere).

Um desafio é que um país que desenvolveu o desejo de branqueamento, não é fácil apresentar uma definição de quem é negro ou não. Segundo Kabengele Munanga [4] os conceitos de negro e de branco têm um fundamento etno-semântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico. Politicamente, os que atuam nos movimentos negros organizados qualificam como negra qualquer pessoa que tenha essa aparência. Sendo assim, entende-se que no Brasil é negro quem parece negro e sê-lo é algo essencialmente fenotípico: cor da pele, tipo de cabelo, traços do rosto.

Um exemplo cruel dessa percepção na prática: em Pernambuco, os homicídios respondem por mais da metade de óbitos de jovens, com uma taxa de 101,5 homicídios por 100.000 jovens. Jovens negros são os mais vitimados: 141,5 homicídios por 100.000 mil jovens. Esses homicídios em sua maioria, são praticados em localidades não constituídos formalmente pelo poder público, localidades de maior concentrações da população negra (pretos e pardos), revelando o maior risco a que estão sujeitas pessoas que sofrem os efeitos da desigualdade social.

Ao sobrepor indicadores sociais e eventos de violência, percebe-se que o homicídio é a principal causa de morte entre pessoas de cor preta, e que o risco de morte é tanto maior quanto mais escura a cor da pele: a taxa de vitimização dos negros é maior que a dos pardos, e a dos pardos, por sua vez, maior que a dos brancos.(MARAVALHO, 2009)[5]

Percebe-se então, que a realidade vivenciada nas dinâmicas escolares, reproduz as dinâmicas da sociedade de maneira geral, a ausência de referências e estereótipos positivados de negro e negritude é fundamental para que no ambiente escolar as tensões e opressões sejam reproduzidas.

A exclusão histórica do sujeito negro, do acesso a bens e direitos e a desconsideração de sua personalidade jurídica nas instituições republicanas no Brasil e a adoção de teorias oriundas do racismo cientifico do século XIX como base do senso comum teórico nos equipamentos de educação, saúde e segurança, consolidam a distorção da presunção da inferioridade e culpabilidade em relação a pessoa negra.

COMO FAZER DE CONTA QUE NÃO EXISTE

As formas de relação geralmente se baseiam na depreciação moral e estética que naturaliza a violência e institui uma cultura de subserviência e não-reação que aponta mais uma vez a herança recebida: os símbolos de inferioridade e o lugar do não-direito. Diante do ideal eurocêntrico de sagacidade, inteligência, beleza, as crianças e adolescentes são levadas a se autonegar, a se mutilar, a não gostar de si mesmas, institui-se assim a negação de sua identidade racial, a fim de se aproximar desse ideal de beleza e aceitação, negar/disfarçar sua negritude é ter uma chance na busca por um lugar no afeto e no cuidado da micro-sociedade ali representada.

CONSTRUINDO ENFRENTAMENTOS

Via de regra, a resposta imaginada para o enfrentamento os episódios de racismo e preconceito no cotidiano racial se pauta na alegação da igualdade entre todos os seres humanos, tal discurso afirma a dificuldade de se lidar com as diferenças e mutila a possibilidade de reconhecimento das peculiaridades culturais do povo negro. No enfrentamento as situações, opta-se aqui pela possibilidade de re-construção de uma identidade negra, a parir da valorização e reelaboração da ideia original da Àfrica

Entendemos aqui que ser negro no Brasil se inicia com a ideia de África e africanos. Assim é necessário que educadoras/es e educandas/os sejam convidadas a um processo de reelaboração “elaborar outras imagens de negros e negras, outras identidades que recoloquem a dimensão o que são e que confrontem e recusem os estigmas” (WERNECK 2006). Busca-se leva-las a abrir os olhos para ver as diferentes forças de estética, beleza, da cultura afrobrasileira, ancoradas na tradição e na vivência corporal, transmissão oral de preceitos que oferecem modelos para a produção de identidades da população negra que contrariam estereótipos (Werneck 2006).

REDESCOBRINDO A ÁFRICA

Propõe-se aqui o desenvolvimento de um processo que busque levar as educadoras e os educadores a compreender a “necessidade da observância do aspecto raça/cor, buscando reconhecer as especificidades de identidade , religiosidade, reconhecimento do lugar do negro no processo histórico de formação da sociedade”(LAGES, 2007:67) [6], entendendo que as brincadeiras pejorativas e a ausência de uma discussão franca e concreta acerca de África e identidade afro-brasileira reforçam a possibilidade do desenvolvimento de uma baixa auto-estima dessas meninas e meninos, enfraquecendo sua autonomia e violam os direitos constituídos, visto que agridem subjetivamente e humilha os/as atingidos/as, produzindo sofrimento e medo, e nenhum ser humano pode ser livre na prevalência do medo.

Tem-se o objetivo de lutar pela constituição de um fazer que possa identificar e revisitar a percepção de África apresentada por meninas e meninos e a partir das vivências propostas na sequência didática com foco na apresentação de um continente positivo, vivo e com uma história interligada a própria história da humanidade e portanto re-significar essas percepções e contribuir para a construção de uma Identidade negra positiva a ser vivenciada por negras/os e respeitada por não-negras/os.

NOTAS

[1] Brasília: SECAD, 2006.
[2] WINNICOTT, Donald W. A família e o desenvolvimento individual. 03 Ed. Martins Fontes, 2005.
[3] Fatores Associados ao Desempenho em Língua Portuguesa e Matemática: A Evidência do SAEB – 2003, agosto de 2004, p. 18.
[4] MUNANGA, Kabengele- A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil, entrevista. Revista Estudos Avançados N50, 2004.
[5] O fator racial nos crimes de execução sumária- A marca do racismo institucional. ONEG, 2009. www.observatorionegro.com.
[6] LAGES, Josélia Batista da Silva. Educação não racista no cotidiano escolar. Recife, 2007.Acompanhe nossas atividades, participe de nossas discussões e escreva com a gente.

_____________________________________

Negra, mulher, nordestina, pedagoga, mãe de João Marcos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário