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terça-feira, 10 de outubro de 2017

QUERO NASCER, QUERO VIVER


A ADNews é a agência responsável pelo anúncio de lançamento de modelo da marca Jeep, o Compass, que utilizou a melodia da canção “Preciso me encontrar”, de Candeia. A canção, interpretada por Cartola, aparece em disco da Marcus Pereira, salvo engano de 1976.

Gosto da canção (muita gente gosta) e utilizei um verso seu (“quero nascer, quero viver”) como epígrafe de um livro de poemas (Ubá), em 1999. O mundo em que se é morto-vivo, realidade extrema, não merece menção explícita na letra da canção, que projeta com ênfase o renascimento idealizado, romântico, com aurora, água corrente e canto de pássaros.

No anúncio, é óbvio, tudo se reduz a andar por aí de jeep compass. Segundo informa a agência, o “conceito” do anúncio é “Feito no Brasil de tudo o que somos e tudo o que podemos ser”, que evidentemente não quer dizer coisa alguma, é uma quase-idéia, parasitária de alguma coisa com sentido que leram algum dia em algum lugar.

Sobre a canção de Candeia, o release da ADNews diz que se trata de “ uma ode à busca do ser humano por significado”. Esse ser humano é todo mundo em qualquer tempo e lugar. Um plano de universalidade que esvazia o caráter histórico que me interessa. Sou muito limitado e considero essas generalizações claros sinais de uma disposição do intérprete de fugir do contexto. Que vida não significa exatamente viver, no contexto que produziu esse discurso?

Na mesma década de setenta, Martinho da Vila fez “Assim não, Zambi”, que conhecemos na voz de Clementina de Jesus. Vejamos os versos, pensando na recusa radical, no grito da alma que se faz ouvir na canção de Candeia ( “quero nascer, quero viver”). O que é latência e implícito em Candeia se escancara nos versos de Martinho da Vila:

“Quando eu morrer/vou bater lá na porta do céu/e vou falar pra São Pedro/que ninguém quer essa vida cruel./Eu não quero essa vida não Zambi/Ninguém quer essa vida assim não Zambi./Eu não quero as crianças roubando/a velinha esmolando uma xepa na feira/ Eu não quero esse medo estampado/na cara duns nego sem eira nem beira./Abre as cadeias/pros inocentes/dá liberdade pros homens de opinião./Quando um nego tá morto de fome/um outro não tem o que comer/Quando um nego tá num pau de arara/tem nego penando num outro sofrer/Eu não quero essa vida assim não Zambi/Ninguém quer essa vida assim não Zambi”.

É claro que vistas as coisas assim, a recusa tem uma dimensão coletiva (um nego e outro nego, idosos e crianças) e a busca do ser humano por significado tem necessariamente um caráter coletivo. A propósito, é bom lembrarmos que “não quero essa vida cruel”, significa alusão ao derramamento de sangue, consequência das agressões violentas que atingem a população negra. Cruel vem do latim “cruor, cruoris”, é sangue derramado.

Voltemos ao anúncio, onde aparece um negro boiando. Sim, ele não dirige o jeep, ele não acompanha quem dirige o jeep. Parece alguém que passa no momento de gravação do anúncio sem vinculação com os outros personagens, nem com a mercadoria anunciada.

O anúncio revela nesse fantasma perplexo suas inconsistências. Um tipo de voyeurismo fica reservado ao negro, na medida em que está dentro e fora do anúncio. É tocante sua solidão, seu desamparo. A dita homenagem a Cartola e Candeia, assim está no release, não sabe o que fazer com a representação do negro. Trata-se de uma forma nada sutil de descompromisso histórico.


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Edson Lopes Cardoso
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo



Fonte: bradonegro

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