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segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Criminalização do aborto mata mais mulheres negras

Mulheres negras têm duas vezes e meia mais chances de morrer durante um aborto do que as mulheres brancas. Provenientes da classes sociais mais pobres, elas costumam não ter condições financeiras para pagar por um procedimento seguro e recorrem a métodos caseiros com maiores riscos de complicações. E diante de um aborto mal sucedido, estudos mostram que elas têm maior dificuldade no acesso a serviços de saúde, o que aumenta o risco à vida dessas mulheres.

Os caminhos que levam as mulheres negras a isso são muitos. A criminalização do aborto é um deles, segundo Mário Monteiro, um dos autores do estudo do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro que detectou o risco mais de duas vezes maior de óbito por aborto entre as mulheres negras. “É possível que a descriminalização do abortamento induzido permitisse a redução de riscos de complicações e mortalidade materna por gravidez que termina em aborto”, afirma o pesquisador.

Atualmente, o aborto provocado é considerado crime previsto nos artigos 124 a 128 do Código Penal Brasileiro e pune tanto a gestante como os profissionais que realizam o procedimento. O único tipo de aborto provocado previsto em lei é em caso de estupro ou de risco à vida da mulher – mas mesmo nesses casos há obstáculos burocráticos que desencorajam a prática.


Outro fator que explica a mortalidade maior entre as mulheres negras é o fato de elas abortarem mais. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o índice de aborto provocado das mulheres pretas é de 3,5%, o dobro do percentual entre as brancas (1,7%). O perfil mais comum de mulher que recorre ao aborto é o de uma jovem de até 19 anos, negra e já com filhos, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA).


“A ausência do pai do bebê no domicílio das mães negras foi maior, evidenciando situação de desamparo emocional e econômico que se soma ao maior maltrato físico vivenciado durante a gestação. Essas ocorrências, associadas à maior paridade das mulheres negras e pardas, podem ser consideradas como possíveis contribuintes da maior prevalência de tentativa de aborto entre elas”, constatam as pesquisadoras Maria do Carmo Leal, Silvana Granado Nogueira da Gama e Cynthia Braga da Cunha no estudo “Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto”.

Outra possível explicação é fato de as mulheres pobres e negras ainda terem menos acesso a opções de métodos contraceptivos, segundo Greice Menezes, pesquisadora do Programa Integrado em Gênero e Saúde (Musa) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “É muito comum ouvirmos do senso comum que a contracepção hoje é fácil, que está aí para quem quiser usar. Mas essa é uma afirmação extremamente leviana”, diz.

O nível de informação sobre educação sexual é extremamente deficiente nas periferias do país, onde está grande parte da população negra. 
 
Segundo uma enfermeira de uma maternidade do sistema público na periferia de São Paulo, que pediu pra não ser identificada, as pacientes por aborto não recebem nenhum tipo de orientação do hospital sobre métodos contraceptivos para a prevenção de gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. “Uma jovem chegou ao nosso serviço depois de provocar um aborto e eu tentei orientá-la sobre os riscos do sexo sem proteção para além da gravidez, como a contração de doenças como o HPV. Ela não tinha a menor noção do que eu estava falando”, conta a enfermeira.

As mulheres em situação de aborto, seja ele provocado ou espontâneo, enfrentam muitas dificuldades no acesso aos serviços de saúde pública, como peregrinação na procura de leitos para internação, exposição a situações de discriminação e violência institucional, segundo Greice, pesquisadora do Musa, da UFBA. Mas em seus estudos sobre o tema, ela observa que as mulheres negras enfrentam uma dificuldade ainda maior no processo de busca por atendimento, e sua única explicação para isso é a ação do racismo institucional.

O Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI) define esse tipo de discriminação como “o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica”. O documento explica que ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados, em uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. “Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações.”

Ou seja, o racismo não aparece de forma deliberada, mas de forma velada nas engrenagens das organizações e relações. “O racismo é estrutural e estruturante. Ele está na forma de atuar, agir e pensar”, diz Emanuelle Goés, doutoranda em saúde pública pela UFBA e coordenadora de saúde do Odara Instituto da Mulher Negra. Os números sobre a saúde da população negra no geral embasa essa constatação. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2015, a primeira a fazer o recorte por raça e cor, mostra que essa população tem desvantagens em quase todos os requisitos pesquisados.

Entre a população branca atendida, 9,5% saem do serviço de saúde com a percepção de que foram discriminadas. O percentual sobe para 11,9% entre pretos e 11,9% pardos – a soma dos dois grupos representa a população negra, segundo a definição do IBGE. Elas também têm menos acesso a planos de saúde e a internações, consultam menos médicos e dentistas, têm mais dengue, são vítimas em maior proporção de acidentes de trânsito e trabalho e de violências e agressões.

Esse menor acesso a serviços de saúde impactam na mortalidade das mulheres negras. Os números do Ministério da Saúde mostram que enquanto o número de casos de mortalidade materna (óbitos durante e logo após a gestação e inclui abortos) cai entre as mulheres brancas, ele sobre entre as negras. Em 2007, 62.503 mulheres morreram em decorrência da gestação, sendo 45,5% brancas e 46% negras (soma de pretas e pardas). Em 2016, o número de mortes registradas foi de 64.265, 41% de brancas e 53% de negras. Ou seja, o número de mulheres que morrem em decorrência de uma gestação subiu, mas a condição da parcela branca melhorou, enquanto a da negra só piorou. As principais causas dessas mortes são hipertensão e hemorragia.

Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz mostra que quase um terço das pardas e negras não conseguiram atendimento no primeiro hospital ou maternidade que procuraram. “A perambulação pelas maternidades na hora do parto constitui-se numa das dimensões da falta de acolhimento das instituições de saúde e reflete a ausência de planejamento sistêmico para assistência ao nascimento”, avaliam os autores do estudo.

Um caso de morte materna dá pistas de como o racismo institucional atua na atenção à saúde da mulher. A estudante Rafaela Cristina Souza Santos, de 15 anos, deu entrada em um hospital público da zona oeste do Rio de Janeiro, em trabalho de parto, por volta da meia noite de um domingo de abril de 2015. Tinha realizado o pré-natal conforme manda o manual. Segundo parentes relataram à imprensa na época, demorou quase três horas para a jovem ser avaliada por um médico, tendo sido acompanhada apenas por enfermeiros neste período, apesar de se queixar de dor de cabeça e do trabalho de parto não avançar.

Às 14h do domingo, ela foi medicada com dipirona para a dor de cabeça e colocada no soro. Logo em seguida, teve uma convulsão por eclampsia, que é causada devido a pressão alta, e foi enfim levada para o centro cirúrgico para realizar uma cesária. Houveram complicações no procedimento, a jovem foi submetida a uma histerectomia (retirada do útero) e precisou ser transferida para outro hospital. Rafaela faleceu naquela noite sem conhecer o filho. Sua morte poderia ter sido evitada caso um detalhe aparentemente pequeno tivesse sido considerado: Rafaela era negra, população que sofre mais com pressão arterial alta. Ou seja, muito provavelmente o desfecho do caso seria outro caso a pressão da adolescente tivesse sido medida e acompanhada ao longo do processo de pré-natal e de trabalho de parto.

“Um pré-natal de qualidade vai impactar na qualidade da saúde e do parto, então um serviço pensado com equidade precisaria se atentar às predisposições da saúde da mulher negra, como a maior incidência de pressão alta”, diz Emanuelle. Ela estuda em seu doutorado o recorte racial em casos de aborto. Ela lista as situações que dificultam o acesso das mulheres negras aos serviços de saúde, o que aumenta os casos em que o desfecho acaba em morte. As mulheres negras são as que esperam mais tempo por atendimento nos serviços públicos, mas as que permanecem o menor tempo nas consultas. “O médico não costuma tocar o corpo negro de forma geral, ou toca menos do que o de um branco, porque acha que ele é sujo ou fede”, conta a pesquisadora.

No caso de aborto, ainda influenciam o fato dele ter sido provocado, de a paciente estar com boa aparência (o que retarda o atendimento, colocando outras prioridades na frente) e a condição de ser solteira e estar desacompanhada. Em seus estudos, Emanuelle observa que o medo de procurar o serviço de saúde e serem maltratadas é maior entre as mulheres negras, o que as faz retardar ao máximo esse momento – aumentando o risco de complicações no aborto.

Esse receio encontra respaldo em comportamentos e práticas baseadas em preconceitos. Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz analisou, entre 1999 e 2001, 9.633 prontuários de grávidas do SUS. Se constatou que as pacientes negras receberam menos anestesia no parto normal dos que as brancas. A cada 100 pacientes negras, 22% não receberam anestesia, proporção que é de 16% entre as brancas. Uma explicação para isso é o mito de que mulheres negras são mais fortes e, por isso, sentem menos dor. No caso de abortos, Greice, a pesquisadora do Musa, diz que o menor uso de medicamentos para o alívio da dor é usado como forma de “punição” por profissionais da saúde para mulheres que eles acreditam que provocaram o abortamento.

Devido a esse cenário, Emanuelle chama a atenção para a necessidade de se adotar uma perspectiva racial na formulação de políticas públicas de saúde. “Precisamos ter metas de redução de mortes maternas por raça e cor, ampliação dos serviços de pré-natal e de métodos contraceptivos e discutir o racismo institucional”, diz Emanuelle. E o gargalo começa desde a formação dos profissionais de saúde. Em sua formação como enfermeira, ela aponta a inexistência de matérias e práticas voltadas para a atenção à saúde da população negra. Isso apesar de existir, desde 2009, uma Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, da qual não se viu implementação em escala.

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Objetivo da Rede
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Fale conosco - Emanuelle Goes (emanuellegoes@gmail.com) 
Mariana Lima (marianapittalima@gmail.com) e Paula Gonzaga (paularitagonzaga@gmail.com)

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