Com o Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio, espraiando-se ao fundo, Sabrina Martina, de 19 anos, a MC Martina, olha para a câmera para transmitir o recado do Movimentos, no que apresenta o coletivo.
“A guerra contra as drogas significa escolas fechadas, mudança de rotina, preocupação com a nossa família. Em nome dessa guerra, o Estado justifica uma série de violações de direitos contra nós, jovens moradores de favelas. Essa guerra não é nossa”, diz a moradora do Alemão.
“Mas somos nós que morremos por conta dela.”
O Movimentos é um grupo de 15 jovens que começou a se reunir há mais de um ano e lançou neste sábado o primeiro resultado desses encontros – uma cartilha sobre política de drogas que começa com a questão: “Por que jovens de favelas precisam falar sobre drogas?”
“Nós nunca fomos inseridos nesse debate, mas nós vivemos a política de drogas”, diz Jéssica Souto, de 24 anos, compositora e videomaker, também do Alemão.
“Quando entrei no projeto, eu não me dava conta de que tudo que a gente vivia – um vizinho morrendo a cada semana, a escola fechada, o medo de sair de casa – é por causa das drogas. Por causa dessas substâncias e de seus efeitos, morre essa cambada de gente. São anos e anos de ações truculentas, tirando vidas, acabando com milhares de famílias”, diz ela.
“A gente não conseguia assimilar o quanto a política de drogas afetava as nossas vidas”, complementa André Galdino, de 30 anos, do Complexo da Maré. “Nossos encontros e a formulação da cartilha permitiram desenvolver essa consciência.”
Joven relatam experiências negativas no contato com a polícia. Foto: Bento Fábio
Tão longe, tão perto
A cartilha vai ser apresentada no Complexo da Maré em um evento que inclui debate, rap e poesia. Haverá vans saindo de diferentes pontos do Rio para incentivar interessados a irem ao evento – simbolizando a dificuldade de fazer a voz das favelas chegar ao asfalto e de transpor a distância entre dois mundos tão próximos e tão díspares na mesma cidade.
A BBC Brasil conversou com parte dos jovens do Movimentos em outro encontro simbólico de mundos: a Escola Parque, na Barra da Tijuca, colégio particular construtivista frequentado por uma elite que almeja uma educação alternativa.
Jéssica, André e Aristênio Gomes, de 24 anos, saíram cedo de suas casas, na Maré e no Alemão, para chegar ao campus arborizado na Barra. Segundo André, o encontro foi “uma troca saudável”, interessante para “confrontar realidades”, mas com perguntas que expunham a falta de conhecimento sobre a vida nas favelas – desconhecimento que o grupo está lutando para reduzir.
Lei de Drogas de 2006 provocou aumento na população carcerária brasileira
Jéssica emocionou os estudantes ao apresentar uma de suas composições, Aborto Social. A música narra a breve vida de um “famoso pivete”, abandonado pelo pai após um aborto malogrado, antes mesmo de nascer. “Nasce outro feto sem afeto nesse mundo complicado”, diz a canção, sobre uma criança que logo virará bandido e não chegará à vida adulta.
Drogas sem mitos
O guia apresenta informações sobre quando jovens começam a ser criminalizados e as consequências da guerra às drogas – citando o aumento de 90% no número de pessoas presas no Brasil entre 2005 e 2013, relacionado à Lei de Drogas de 2006.
A cartilha será distribuída entre ativistas, militantes e lideranças de favelas, no Rio e em outras cidades. O objetivo é oferecer subsídios para multiplicar o debate.
“A cartilha é para discutir como a guerra às drogas afeta as favelas e a sociedade como um todo”, opina Jéssica. “Um dos pontos centrais é olhar para o usuário pela ótica da saúde. Assim como temos usuários pesados de álcool, e eles não são tratados à mira de um fuzil.”
Jéssica diz ter perdido um amigo há dois meses no Alemão, baleado durante uma troca de tiros. Aristênio diz ter perdido a conta de quantas vezes viveu ou presenciou “achaques” da polícia na Maré, ou que teve a casa revistada, inclusive no meio da noite.
Grupo de jovens, que começou a se reunir há mais de um ano, quer protagonismo no debate sobre política de drogas. Foto: Divulgação
“Acordei com os gritos da minha mãe. Saí do quarto correndo e dei de cara com um fuzil no peito”, lembra. Os três relatam “quase ter morrido” algumas vezes, e delatam a truculência policial como corriqueira nas favelas cariocas.
Questionada sobre as críticas feitas pelo grupo, a Polícia Militar não atendeu ao pedido de resposta da BBC Brasil.
A assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública ressaltou que o secretário Roberto Sá formou, como uma de suas ações estratégicas, um grupo de trabalho para debater política de drogas. Com a participação de dez instituições – que reúne das polícias Militar e Civil à Uerj e ao Instituto Igarapé -, o grupo se reuniu três vezes desde sua criação neste ano para “estabelecer um diagnóstico sobre a política de drogas e fomentar parcerias para elaborar ações preventivas”.
“Criminalizados, estigmatizados”
A crise econômica no Rio e o aumento da criminalidade no Estado levaram o governo federal a enviar, em julho, o Exército para reforçar a segurança.
Mas os confrontos entre facções criminosas ou entre tráfico e polícia têm sido constantes em favelas cariocas. Na quinta-feira, mais de 5 mil alunos ficaram novamente sem aulas, com 17 escolas fechadas devido a confrontos em favelas cariocas. A rede municipal de ensino só teria funcionado de maneira plena durante oito dias neste ano.
Um vídeo lançado pelo governo federal para promover a atuação de militares causou polêmica ao contrapor imagens idílicas de paisagens do Rio à presença de tanques em favelas, dizendo que o Rio está “ferido”, mas segue em frente cheio de “vida, alegria e beleza”, e resiste, sabendo que a luta “é de todos nós” – exibindo o aparato militar nas comunidades.
“A guerra às drogas criminaliza e cria estigmas sobre quem vive nas periferias”, diz André. “Esse recorte racial ocasiona o genocídio da juventude negra e pobre das favelas.”
Policiais fazem mira com armas de alto calibre, apesar da presença de crianças ao redor
Sem apologia
O Movimentos nasceu em maio do ano passado, quando uma oficina promovida pelo Centro de Estudos e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (Cesec) juntou jovens do Rio, de São Paulo e da Bahia para discutir política de drogas.
A partir de então, os encontros se tornaram regulares, passando a ocorrer cerca de duas vezes por mês em favelas ou no Cesec, n o Centro do Rio, com um intercâmbio constante entre a pesquisa acadêmica e a vivência nas comunidades – palavra que o grupo se nega a usar, preferindo falar sempre em favelas.
Da esquerda para a direita: Jéssica, Aristênio, André e Ana Clara Teles, pesquisadora do Cesec. Foto: Júlia Dias Carneiro
Da esquerda para a direita: Jéssica, Aristênio, André e Ana Clara Teles, pesquisadora do Cesec. Foto: Júlia Dias Carneiro
“Ninguém está fazendo apologia do uso ou da venda de drogas. O que esses jovens querem é desafiar o senso comum, desafiar ideias preconcebidas em relação à política de drogas e contribuir para mostrar que a atual política de drogas acaba por legitimar a violência da polícia dentro das favelas”, diz a socióloga Julita Lemgruber, uma das coordenadoras do Cesec.
Ana Clara Teles, pesquisadora do Cesec, considera que o grupo tem um duplo papel: trazer o debate sobre política de drogas para dentro das favelas, aumentando a conscientização o impacto da guerra às drogas sobre seu dia a dia; e levar a favela para o centro do debate na cidade, que vê a favela como “coadjuvante”.
“A academia tende a construir um olhar enviesado sobre política de drogas. Quando se adota a perspectiva da favela, surgem problemas e questões que precisam estar no centro da discussão. A partir daí, podemos chegar a soluções mais pertinentes e justas para a população como um todo”, avalia Teles.
Depois de lançar a cartilha, o grupo vai começar a trabalhar em um documento propositivo para política de drogas e planeja para o fim do ano um encontro nacional reunindo jovens de favelas e periferias para ampliar o debate.
Fonte: BBC
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