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segunda-feira, 2 de outubro de 2017

O segredo do sucesso: bata no negro


A edição nº 17 do “Jornal do MNU”, de set./out./nov. de 1989, traz dois textos sobre passeata de adeptos da Igreja do Reino Universal (IURD) realizada em Salvador, no dia 14 de agosto de 1989. A passeata era uma manifestação política de grande hostilidade contra as religiões de matriz africana e tachava seus seguidores de “criminosos e infanticidas”.

O texto da página 2, “Guerra santa”, assinado por Lindinalva Rosa de Oliveira (Naná) é mais completo que o da página 9, “Salvador repudia ameaça nazista”, quase uma nota de rodapé não assinada.

Lindinalva de Oliveira rebateu as acusações da IURD, denunciou manipulações que enredavam a população negra da periferia e bairros populares e descreveu fato recente ocorrido no Cabula, que ela associou de pronto à passeata da IURD:

“No Cabula, em São Gonçalo, existe uma igreja desse ramo (IURD). E ela reuniu seus fiéis que, como se estivessem possessos, com baldes e vassouras, lavando a rua, gritavam: SAI, SATANÀS! Varriam, jogavam água no asfalto e quando chegaram em frente ao portão do ILÊ AXÉ OPÔ AFONJÁ empunharam as vassouras e entraram agredindo todos que ali se encontravam trabalhando, que tiveram que se defender da melhor forma. Imagine a que ferocidade essas forças mal direcionadas estão levando as pessoas. Essa gente, que não respeita nem a privacidade de seus vizinhos, invade domicílios numa comunidade onde existem creche e escola primária, faltando com o respeito devido à presença de crianças de tenra idade e senhoras de idade avançada, numa atitude antidemocrática.”

Como se pode ver, já era perceptível em 1989, há quase três décadas, com registros na imprensa negra, que a IURD constituía um desafio à sobrevivência das religiões de matriz africana. Ontem, no Rio de Janeiro, organizadores da “X Caminhada contra a Intolerância Religiosa”, Ivanir dos Santos à frente, ressaltaram que somente em 2016, no Rio, foram registrados 759 casos de intolerância.

Quando se tem o luxo de poder contar com o poder judiciário, coisa aparentemente proibida aos negros no Brasil, é possível alimentar a esperança de que agressões ao direito de crença possam vir a ser punidas de alguma forma. Mas a justiça no Brasil trabalha com critérios extremamente rigorosos que lhe permitem separar a humanidade da não-humanidade. Dignidade, liberdade, direitos e justiça diferenciam o humano do inumano.

Sendo as coisas assim, a receita é simples: bata no negro que o bolo cresce. Dos anos 80 para cá, assistimos ao grande empenho dos progressistas de esquerda para estimular a ação política dos neopentecostais. O fortalecimento das alianças políticas com forças “progressistas” garantiu-lhes a institucionalização e sempre mais acesso ao dinheiro público, amplas redes de comunicação e de diversificados empreendimentos comerciais.

O resultado está à vista de todos. Após alguns mergulhos purificadores no rio Jordão, entes santificados estimulam a invasão de terreiros de candomblé e umbanda para supliciar mães e pais de santo.

O mote inquisitorial é a coação absoluta e milicianos, narcotraficantes e pastores de bíblia e fuzil na mão caem matando. Tudo filmado, documentado, para melhor semear o terror.

Bacana a resistência, a caminhada, mas não há sinais de que alguma instância com poder para tal se disponha a tomar providências que possam atender os interesses do povo de santo diante da extrema brutalidade. Temos que reconhecer que o ódio que os neopentecostais expressam pela religiosidade com origem na África tem uma importante função política, porque quanto mais nos odeiam mais se dão bem nesse país maravilhoso.

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Edson Lopes Cardoso
Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo

Fonte: bradonegro

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