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quinta-feira, 18 de junho de 2015

Sobre colonização cristã, família, medo e honra

 
Eu tenho descendência negra e indígena. Mas nasci num lar colonizado. Desde criança, cresci e convivi num lar ocupado pelo cristianismo.

Por muito tempo, a minhas referências espirituais, minhas escolhas e princípios pessoais tinham origem no medo e na culpa cristã. Nesse texto eu quero falar sobre um entre tantos medos: o medo de não “honrar” meus pais.

A bíblia tem um versículo bem difundido no meio cristão, especialmente, entre as crianças e adolescentes:

“Honra o teu pai e a tua mãe para que se prolonguem os teus dias”.

Quero começar pelo significado do termo ‘honra’. Numa pesquisa rápida online descobrimos que honra pode remeter a respeito, privilégio, castidade da mulher (WTF!?) e honestidade. Na conjuntura cristã em que fui criada, honra refere-se a respeito. Então, recapitulando, quando criança, aprendi que deveria respeitar meu pai e minha mãe. Até aí, ok.

Porém, quando paramos pra pensar cuidadosamente na dinâmica de poder estabelecida – não só em lares cristãos, mas socialmente – entre pais e filhos, conseguimos identificar que, na verdade, esse ‘respeito’ significa, por vezes, medo. No contexto do versículo, se eu não honrasse meus pais meus dias diminuiriam!

A primeira vez que me dei conta disso eu tinha entre 7 e 8 anos. Então, eu que sempre gostei muito de viver, tinha muito medo! Tinha medo de sentir raiva pelos meus pais. Tinha medo de agir diferente de tudo que eles tinham me ensinado como certo. Tinha medo da mais remota possibilidade de contrariá-los! Afinal, a cada contragosto, meus dias diminuiriam! Eu iria morrer cedo! E esse medo me paralisava tanto que eu mal conseguia amá-los, pois, a cada vez que o medo se anunciava, eu não conseguia sentir mais nada. Só medo.

Juro, essa ideia me atormentou por mais da metade dos anos que tenho! Faz pouco mais de três anos que comecei a estudar, pesquisar e conhecer minhas raízes ancestrais, a partir daí, a minha leitura sobre família, amor e honra vem atribuindo novas interpretações. Tem sido um processo simultâneo, à medida que aprendo sobre as histórias, os mitos, as crenças e os rituais, conquisto uma herança que me foi tirada antes mesmo de nascer. Assim, meus conceitos e definições também tem se transformado ao longo do tempo.

Com a ancestralidade eu aprendi que honra é um respeito sem medo. É um respeito que vem do reconhecimento por tudo que nos foi ensinado, por todas as dores que nossos antepassados foram submetidos, pela coragem que lhes fizeram lutar. Não há castigo ameaçando a existência da honra, há privilégio. Privilégio de saber de onde viemos, quem somos e quem podemos ser.

Hoje, eu consigo olhar pra trás e entender a invasão religiosa cristã que acometeu minha família, eles não são responsáveis. Ainda assim, me esforço em recordar cada cuidado, cada carinho, cada ensinamento e me surpreendo ao perceber que, ainda que colonizados, houve resistência! Consigo lembrar que a minha mãe, neta de índia, sempre que eu adoecia recorria a um suco de frutas e ervas que sua avó tinha ensinado. Meu pai, neto de escravizados negros e semialfabetizado, sempre batalhou pra que eu estudasse e constantemente me dizia que eu poderia ser o que eu quisesse ser. Há outros tantos achados da memória que revelam resistência! O importante é que saibamos: são legados como esses que fazem brotar o respeito sem medo.

O povo africano costuma atribuir ao termo UBUNTU, dentre vários significados, um interpretado por Nelson Mandela da seguinte forma: sou o que sou pelo que somos. Me atrevo a dizer que esse tem sido também o meu mais valioso significado de honra. Honra por reconhecimento e amor mútuos. Esse entendimento me fez amar mais meus pais. Amar sem medo, amar sem culpa, amar livre!

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Imagem destacada: Foto do Ato “A paixão de Cláudia“.

Negra, potiguar, feminista e juremeira. Publicitária, porém anti-capitalista e por esse motivo: empenhada em descobrir meios de "burlar o sistema" e adotar a autogestão como prática cotidiana.

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