Por Luara Vieira,
Toda vez que alguém diz que sou bonita, sinto vontade de dizer: “será?”. E a questão não é a falta de educação ou modéstia, como podem pensar alguns, a questão é uma estrutura violenta moldando e conformando padrões de beleza, que por mais que eu tente (e nem tento muito), jamais vou me adequar, é questão de toda uma construção de mundo que vem me fazendo sentir o contrário, há mais de vinte anos.
Depois de cada elogio, ainda que bem intencionado de amigos, familiares e/ou colegas de trabalho em me ver bem, não é fácil dizer “obrigada” sem que eu sinta vontade de questionar mil coisas. Por mais bem-intencionada que seja a pessoa, nos últimos tempos, ouvir isso tem me ferido, me fere porque parece mentira. E não parece mentira porque eu de fato não me sinta bonita. Apesar dos pesares, eu me vejo, mas parece que sou a única com essa visão, e as pessoas me dizerem isso sem questionar uma realidade objetiva que grita todos os dias no meu ouvido e de muitas mulheres negras que “não, não somos bonitas”, é o que tem me ferido.
A cada elogio recebido, eu penso no quão incoerente é a afirmação, já que não me vejo nas revistas, nas novelas, nos outdoors, simplesmente não me vejo em nada ou quase nada. E é ai que a afirmação me fere, pois me ponho a pensar que se considerassem mesmo minha beleza, considerariam a de minhas irmãs e irmãos, nos estampariam em todos os meios de comunicação, não nos roubariam a autoestima, como fazem há muitos e muitos anos.
Falar em autoestima é pensar “(…) uma construção social, na qual cada sujeito vai podendo construir-se, na medida em que se relaciona com os outros. Como consequência dessa relação, ocorre a autoapreciação, autovalorização, a valorização de sua origem racial e, por fim, e consequentemente a autoestima.” Mas como homens e mulheres negras terão autoestima dentro do sistema em que vivemos? Quando mulheres negras aceitarão um elogio sem ao mesmo tempo serem feridas por ele? Quando conseguiremos construir sobre nós mesmos um olhar de autovalorização e autoapreciação?
Faço-me essas questões cotidianamente, faço-me ao olhar para o espelho, vendo minha imagem refletida, achando-me bela. E ao sair do quarto, vejo o mundo negando isso a cada detalhe da vida. E sim, é a cada detalhe. Não preciso ser insultada para ver a negação, posso ser simplesmente ignorada, preterida, invisível, tanto nas relações impessoais quanto nas pessoais. O racismo está impregnado nos detalhes, nos detalhes! Sinto vontade de sair gritando isso, porque as pessoas não percebem, ou se recusam a perceber, e ai, mais uma vez a fusão de duas opressões (racismo e machismo) destroçam ainda mais a autoestima de milhares de mulheres negras no mundo inteiro.
Em todos os grupos na internet que participo, existem mulheres negras queixando-se da invisibilidade que nos é imposta, invisibilidade que vai de um não elogio merecido no trabalho, de um professor que hora ou outra sugere de modo velado ou mesmo escancarado uma descrença na sua produção, até os milhares de relatos de mulheres que não são vistas para as relações afetivas e/ou sexuais. E tudo isso, minha gente, tudo isso está nos detalhes e posso afirmar, categoricamente, que são os detalhes que tem minado nossa saúde psicológica e muitas vezes física, são os detalhes que a branquitude se recusa a enxergar que tem destroçado nossa autoaceitação e autovalorização.
Façam o exercício de pensar a dificuldade que é para uma mulher (de qualquer raça que seja agora) sentir-se bem em uma sociedade com padrões de beleza tão cruéis como são os nossos. Onde o machismo nos mata, nos poda, faz com que nos sintamos incapazes de tudo o tempo todo. Como alguém se valoriza, se ama e se aceita nessa podridão que nos é imposta cotidianamente? Agora, exercitem a intersccionalidade e pensem como uma mulher negra constrói sua autoestima em meio a esse lamaçal construído pela branquitude há séculos?
Nós mulheres negras, temos que construir nossa autoestima a duras penas, ultrapassando com as forças de nossas ancestrais, o racismo e o machismo. Racismo que nos nega todos os dias a possibilidade de nos sentirmos belas, visto que existe um padrão de beleza hegemônico e que conforma gostos, sentimentos, preferências e tudo mais o que perpassa as relações que estabelecemos coletivamente. E veja só, esse racismo não está só nas questões objetivas da vida, ele está naquilo que nos parece mais subjetivo. Naquilo que não questionamos por tratar-se “só” de sentir e ai juntamos o racismo mais machismo e tornamo-nos um objeto aos olhos racistas, mas um objeto de menor valor, se pensarmos a objetificação da mulher branca, por exemplo, visto que ainda nesse sistema horrendo essa possui o “”bônus”” da brancura para que consiga transitar melhor e que consiga construir sua autoestima com um pouco mais de facilidade.
Desse modo, pensar a autoestima da população negra, em especial das mulheres negras é pensar algo que ultrapasse a “camaradagem” dos elogios, precisamos de autocrítica em todas as esferas da vida, precisamos nos posicionar com mais força e ultrapassar os elogios, precisamos conjuntamente de ações concretas, de representação efetiva. Não é mais tempo de ficarmos a elogiar negras e negros que nos são próximos, enquanto que nas oportunidades efetivas de transformação não nos impomos. Existem mulheres negras morrendo psicologicamente todos os dias pelos efeitos devastadores do racismo em nossas vidas. Ou mudamos nossa postura individual e assim mudamos coletivamente, ou eu, assim como tantas outras, ouviremos uma cantada na rua e em uma negativa nós seremos chamadas de macacas, na cruel intenção de negarem não só nossa beleza como nossa humanidade, e toda vez que alguém disser o quanto sou bonita, mais uma vez desejarei perguntar “será?”.
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Imagem destacada:
Referências:
JULIO, Ana Luiza. Por uma visão psicossocial de negros e negras. Protestantismo em Revista, São Leopoldo, RS, v. 24, Janeiro- Abril, 2011.
Fonte: Blogueirasnegras
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