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segunda-feira, 29 de junho de 2015

Racismo na infância: terreno fértil para a violência


Ser uma criança negra no sul e sudeste. Eu escolhi esses recortes porque foram as regiões onde vivi quando criança. Apesar de uma breve temporada na Bahia, minha vida foi São Paulo e Paraná.

Desde pequena eu soube o que era racismo, mas nem lembro onde aprendi o “conceito”, porque isso não era muito debatido em casa. Num geral, pessoas negras descobrem o racismo na prática, já que as escolas – públicas e particulares – se recusam a adotar práticas inclusivas.

Minha mãe comentava algumas histórias dela quando criança, tendo sido insultada por membros da própria família por causa de sua pele e cabelo. Mas quando comecei a ouvir as primeiras ofensas racistas óbvias a instrução que eu recebia dos adultos era “não ligue, finja que não ouviu”. Isso era muito pouco eficiente para eu enfrentar as crianças que passavam por mim me chamando de cabelo de Bombril, galinha de macumba, pedaço de carvão e outras alcunhas conhecidas.

Em casa eu pegava aquelas fraldas Cremer e amarrava na cabeça para fingir que era peruca. Embora anos depois eu me lembrasse disso com estranheza eu descobri, conversando com outras mulheres negras, que isso era prática comum: por qualquer pano que lembrasse a “fluidez” de cabelos lisos. Como minhas bonecas eram todas loiras – única opção nas prateleiras das lojas de brinquedos dos anos 80 e 90 – eu realmente acreditava que teria filhos loiros.

Estou contando esses pequenos fragmentos para ilustrar o que quero dizer, mas as sensações de uma criança sob a mira do racismo são muito complexas, e é bastante difícil falar sobre algo que permaneceu jogado para debaixo do tapete durante tanto tempo. Sabemos que políticas afirmativas caminham a passos de tartaruga porque encontram muita resistência pelo caminho. Tempos atrás, por exemplo, descobri que professores evangélicos se recusaram a ensinar História da África aos alunos. Ou seja, com tantas evidências sobre o racismo na infância é até difícil começar a falar sobre. Então vamos fazer uma breve linha do tempo, do nascimento até mais ou menos o começo da adolescência de uma pessoa negra.

Não nascemos todos iguais

Vamos partir do já conhecido fato de grande parte da população negra ser pobre, porque descendemos de humanos escravizados que foram largados à própria sorte após a abolição: sem dinheiro, sem terra, sem direito de exercer algumas profissões, mas sempre vigiados por pessoas brancas cheias das melhores intenções, que os mantiveram às margens da sociedade.

Um negro hoje muito provavelmente nascerá pobre. A ascensão social frágil e lenta da população negra ainda não conseguiu modificar totalmente este cenário, e uma observação em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro nos mostram isso. Sendo assim, a criança negra cresce em um ambiente hostil: convive na periferia com todo o tipo de violência, e desde muito cedo precisa aprender a se virar. No meu caso eu cresci na casa da patroa da minha mãe, vendo-a pendurada em janelas para deixar o vidro sempre brilhante e trabalhando desde muito cedo até muito tarde.

Às vezes vemos pessoas caírem na tentação de aplicar um zoom em negros de classes mais altas como Joaquim Barbosa, nome que todas as pessoas contra políticas afirmativas amam invocar quando querem legitimar o argumento furado de que ações sociais não seriam necessárias. Então é necessário relembrar à exaustão o fato de que o próprio Barbosa é uma exceção. Assim como Carl Hart, por exemplo. Quantos negros conhecemos exercendo a posição de neurocientistas?

Crianças que nascem já estigmatizadas por sua cor da pele, pelo local em que moram e pelos lugares onde estudam têm poucos exemplos que as representem. Alie isso a zero incentivo e temos bombas-relógio. Logo, temos um duplo problema aí: falta de representatividade em diversas áreas de atuação e o reflexo da falta de acesso à educação e opções de carreiras para crianças negras.

Eu tive uma mãe sempre bastante próxima. Não teve uma decisão em minha vida que ela não apoiasse. Mas ela conseguiu o emprego como empregada doméstica em uma casa que me aceitava junto e sempre se sentiu alvo de um golpe de sorte, porque todas as demais patroas jamais admitiam que a empregada levasse a filha pequena junto. Essa proximidade facilitou o acompanhamento dela, mas eu cresci vendo amigos meus passando tempo demais sozinhos porque os pais trabalhavam longe e em locais pouco amigáveis com crianças.

Nossa sociedade possui uma visão bastante limitada sobre as populações marginalizadas, onde tudo é resolvido com cadeia. As pessoas ricas mantêm empregados domésticos para tarefas de limpeza que uma pessoa saudável poderia perfeitamente realizar, não fosse sua crença de precisar de alguém (pobre) para fazer coisas que uma pessoa com mais dinheiro crê serem indignas, talvez, como limpar o banheiro onde você esvazia seu corpo daquilo que ele não precisa mais ou lavar o prato onde você acabou de fazer sua refeição. O que isso tem a ver com infância e racismo? Tudo. Estou usando um único exemplo de profissão considerada de segunda importância, mesmo que patrões insistam em afirmar que suas serviçais são como da família, aparentemente esquecendo que a família desta empregada está desamparada. Não são raros os casos de mulheres que compulsoriamente abrem mão de tempo com a família para cuidar dos assuntos dos senhores da casa grande. Crianças negras formam a maior parte desse núcleo que acaba sendo deixado de lado. E há muito pouco sendo feito em prol da emancipação econômica dessas mulheres, para que possam contar com mais opções de carreira, se assim desejarem. Só que esse é um viés único no meio de uma malha de vieses. (inserir ilustração de escrava negra amamentando criança branca e de babas cuidando de crianças brancas).

Pensem no racismo como uma árvore. A pobreza das famílias negras é um dos galhos.

O outro galho é educação formal, ou seja, as escolas. O Estado não ampara professores, que não sabem lidar com racismo nas escolas. Em instituições particulares nenhuma ação é tomada para explicar a história negra e a influência da cultura africana no nosso dia a dia. É considerado normal que as crianças cresçam com a noção de que escravos eram seres primitivos e europeus brancos atuaram com heroísmo na catequização e “domesticação” daqueles que eram julgados animais selvagens.

Não existe maneira sutil de se lidar com racismo na infância. As crianças negras precisam ter acesso à ancestralidade, coisa que nosso modelo educacional defasado e elitista não propõe. Não adianta que as comunidades mais pobres continuem sendo objeto de estudo de acadêmicos já detentores do lugar de fala, se essa população não consegue espaço para falar por si.

Outro fator que acaba ajudando a manutenção do status quo é a mediocridade de pensamento dos que negam a importância da luta pelas manifestações africanas e afro-brasileiras, frequentemente expressadas por uma indignação quanto ao que chamam de “negros querendo privilégios”. Vamos dar um passo para trás e observar o seguinte cenário:

Música de Mozart, literatura de Shakespeare, arte de Picasso, cinema de Hollywood, moda de Vogue, culinária da França, religião Católica, lendas de irmãos Grimm, arquitetura Alemã. Todos esses são assuntos que nos são ofertados como cultura.

Candomblé, Zumbi dos Palmares, rap, grafite/pixo, samba, danças, roupas e rituais africanos, tambores. Tudo isso nos é colocado de maneira para expressar o que é errado, primitivo, desnecessário. Carolina de Jesus, Geni Magalhães, George Washington Carver, Ernest Everett Just, Mae Jemison, Neil Degrasse Tyson, Chevalier de Saint-George são nomes deixados de lado em diversas bibliografias, e jamais abordados em sala de aula.

De modo que a escola nos torna especialistas em cultura europeia e tudo o que sair desse eixo é exótico. Como uma criança negra pode ser enxerga na História quando a ela é reservado um único capítulo que conta que negros foram trazidos para o Brasil, escravizados e depois libertos em um ato heroico e piedoso de uma pessoa branca? Este episódio histórico é tratado como uma mera passagem de tempo, quando na verdade significou um período monstruoso de genocídio. Ou seja, a cultura branca já é valorizada em sua totalidade, então eis o espelho do egoísmo de quem torce o nariz para políticas afirmativas que estilhacem os vidros de sua zona de conforto.

Por que ver crianças negras em situação de miséria é tão bem aceito? Existe uma prova maior de que o racismo é tolerado do que o fato de esse assunto ser repudiado e constantemente desconsiderado?

O que fazer, então?

O racismo é fruto de um conjunto de fatores, e a socialização é um deles. É difícil arrancar conceitos arraigados no indivíduo. E por isso o racismo precisa ser combatido com lógica, oferecendo possibilidades de desenvolvimento sadio que para crianças negras e o convívio com toda a sociedade:

Reflexão na inserção de crianças negras na publicidade e nas artes (televisão, cinema, literatura). Acompanhamento psicológico às crianças que afirmam terem sido vítimas de racismo, no lugar de negligenciar tais queixas.

Ainda há muita resistência no cumprimento da lei 10.639/03, em vigor há 12 anos e que institui o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. Ainda são muitos os entraves para que a lei seja cumprida, desde a burocracia que faz com que materiais educativos que não chegam a todas as instituições de ensino, até educadores que se recusam a pautar o tema em suas aulas por motivos de religiosidade pessoal. E esta realidade quase não tem sido questionada. Por que nada é feito a respeito do não cumprimento desta lei, especificamente? Graças a grupos de estudo e projetos educacionais, a lei e sua importância têm sido disseminadas, mas ainda de maneira tímida.

Crianças que sofrem racismo padece de baia autoestima, auto ódio, negação da própria raça, além de estarem mais propensas a depressão e ansiedade. A diretora do Instituto AMMA Psique e Negritude, Maria Lúcia da Silva, explica que na primeira infância é fundamental que o ser humano se sinta aceito, pois traumas causados nesta etapa da vida podem levar sentimentos de depreciação de si mesmo. Por isso o mito da democracia racial, tão bem abraçado – pois dá à sociedade certo conforto e um sentimento de isenção de responsabilidade – precisa ser desconstruído, pois simplesmente não reflete a realidade. Vivemos em um país que conhece, porém negligencia essa violência estúpida contra crianças negras. O racismo contra os pequenos é tolerado.

Em paralelo a isso, o massacre da juventude negra e a bestial sede de vingança das classes mais abastadas causam danos muitas vezes irreversíveis à saúde da população negra e reverbera em toda a sociedade brasileira.

Crianças negras têm 70% mais de chances de viver na pobreza

Crianças negras têm 50% mais chances de morrer do que crianças brancas

37% de pessoas na fila da adoção só aceitam adotar crianças brancas

A quem interessa manter este quadro como está, com pouca ou nenhuma melhora? É possível se isentar de parte da responsabilidade?

Quando nos recusamos a falar sobre o racismo, damos a entender de que a realidade está boa como está. Negar debater o racismo é aceitar que pessoas morram por terem nascido com a cor de pele que não é aceita pelo brasileiro, por mais que este esperneie e bata panelas com a desculpa de buscar uma sociedade democrática. O que é democracia e o que é mais urgente: o direito à compra do lançamento da Ford, o direito ao passeio no Iguatemi ou o direito ao básico para a manutenção da vida – água, comida e saúde?

O racismo na infância é responsabilidade de cada pessoa que compõe a população brasileira, mas em especial dos que detém algum grau de poder e dominação sobre populações carentes. Da madame que torce o nariz para o negrinho que pede dinheiro no farol mas mantém em casa uma (ou algumas) empregada doméstica com um salário risível acreditando estar fazendo um favor ao oferecer um trabalho, ainda que muitas vezes insalubre, até o professor universitário que fecha as portas de sua sala para grupos de negros que desejam explicar políticas afirmativas aos alunos.

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Imagem destacada: I love being Black

Referências: 

Gabriela Moura é Bacharel em Relações Públicas, amante das artes, redatora, desenhista, pintora e artesã, usa a arte como instrumento de mobilização e resistência.

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