Em 1914, há exatos 100 anos, começava uma campanha para mascarar o racismo no país através da guerra contra as drogas. Seu legado existe até hoje.
Por Carl L. Hart,
"Espírito Maligno da Cocaína dos Negros é a Nova Ameaça no Sul”. Essa era a manchete de um artigo que eu li enquanto pesquisava para meu PhD, em 1996. Ele envolvia tentar entender os efeitos comportamentais e neurobiológicos de drogas psicoativas como cocaína e nicotina. Então eu li tudo o que parecia relevante.
A manchete provocativa apareceu no New York Times em 8 de fevereiro de 1914. Eu fiquei surpreso pelo título, apesar de saber que houve uma época em que era aceitável imprimir palavras tão racistas em respeitáveis jornais. Mas o que realmente era chocante foi o quão similar com antigamente ainda é a cobertura da mídia moderna sobre drogas ilegais e como, desde cedo, o discurso racial sobre drogas servia para um propósito político maior.
O autor, um renomado médico, escreveu: “[O espírito maligno do negro] imagina que escuta pessoas o provocando e se abusando dele, e isso, geralmente, incita ataques homicidas sobre inocentes vítimas”, e ele continua, “A precisão mortal do usuário de cocaína se tornou axiomática nos círculos de polícia no sul do país… o relatório de um “preto com cocaína” próximo à Asheville, que matou cinco homens usando apenas uma bala para cada um, oferece evidência que é suficientemente convincente”.
Cocaína, em outras palavras, tornava homens negros unicamente mortais e melhorava suas miras com armas. Mas não era tudo. Ela também produzia “uma resistência para ‘nocautear’ os efeitos de ferimentos fatais”. Tiros em partes vitais que derrubariam um homem são, falharam em derrubar o “espírito maligno”.
Despropositado? Sim, mas tal relato não era exceção. Entre 1898 e 1914, numerosos artigos apareceram, exagerando a associação de crimes hediondos com cocaína usada por negros. Em alguns casos, a suspeita de intoxicação com cocaína em negros era razão o bastante para justificar linchamentos. Eventualmente, isso ajudou a influenciar a legislação.
Nessa época, o Congresso estava debatendo se passava ou não a “Harrison Narcotics Tax Act”, uma das primeiras investidas dos EUA na legislação nacional de drogas. Essa lei – sem precedentes – procurava taxar e regular a produção, importação e distribuição de produtos derivados do ópio e de coca. Proponentes da lei enxergavam nela uma estratégia para melhorar as relações abaladas com a China, demonstrando um compromisso com o comércio de ópio. Oponentes, muitos dos estados sulistas, já viam isso como uma intrusão nos direitos estaduais e evitaram a aprovação de versões anteriores da legislação.
Em 1914, no entanto, os proponentes da lei encontraram um importante aliado em sua busca para conseguir a aprovação: o mítico “espírito maligno”, o qual, jornais proeminentes, médicos e políticos, prontamente exploraram. Realmente, em audiências do congresso, “especialistas” testemunharam que “a maioria dos ataques contra homens brancos no sul eram resultado direto do cérebro doido de um preto usando cocaína”. Quando o Harrison Act se tornou lei, os proponentes podiam agradecer ao medo de negros dos sulistas por facilitar a aprovação.
Com isso como cenário, a política de drogas nas décadas seguintes segue por um foco mais agudo. Apesar do Harrison Act não proibir, explicitamente, o uso de heroína e cocaína, a aplicação da nova lei se tornou rapidamente cada vez mais punitivas, ajudando a montar o palco para a aprovação da 18º Emenda (proibição do álcool) em 1919 e, finalmente, toda a política de narcóticos até 1970. Importante destacar, a retórica que rodeou as primeiras conversações sobre uso de drogas, não evaporaram: ela continuou e evoluiu, reinventando-se ainda mais poderosa na mitologia do crack.
Desde suas primeiras aparições nos anos 1980, cocaína crack foi impregnada com uma narrativa de raça e patologia. Enquanto o pó de cocaína ficou associado a um símbolo de luxo e para brancos, o crack era pintado como terrivelmente aditivo, imprevisível e com efeitos mortais e claro, associado com negros. A essa altura, obviamente, as referências com raça em tal contexto não eram mais aceitáveis. Então problemas relacionados com crack eram descritos como prevalentes em áreas “pobres”, “urbanas” ou “problemáticas”; termos como “guetos” e “cidades internas” eram códigos para “negros” e outras pessoas indesejáveis.
Um artigo do New York Times, em 7 de março de 1987, lia-se “Nova violência vista em usuários de cocaína”, oferece um exemplo potente. Ela descreve um incidente no qual “um homem aparentemente usando cocaína manteve quatro pessoas de reféns por 30 horas em um apartamento no leste do Harlem”. O fato de que o uso da cocaína nunca foi confirmado, foi minimizado e, como o leste do Harlem era quase que exclusivamente de negros e latinos, não se precisava mencionar a raça do suspeito. A mensagem era clara: o crack faz pessoas pobres e de cor, violentas e loucas.
Nos próximos anos, uma enxurrada de artigos similares conectavam crack e os problemas associados, com pessoas negras. Unidades inteiras de policiais eram colocadas em “vizinhanças problemáticas”, fazendo com que houvesse um excesso de prisões e subjugando as comunidades alvejadas a um tratamento desumano. Ao longo do caminho, complexos econômicos e forças sociais foram reduzidas a problemas de justiça criminal; recursos eram direcionados para o cumprimento da lei, ao invés de cuidar dos problemas reais de tais vizinhanças, como criação de empregos.
Em 1986, o Congresso aprovou o infame Ato do Abuso Antidrogas, estabelecendo penas que eram 100 vezes mais rigorosas para usuários de crack do que de cocaína. Nós agora sabemos que incríveis 85% daqueles sentenciados por crack eram negros, apesar da maioria dos usuários serem, até hoje, brancos. Nós também sabemos que os efeitos do crack eram enormemente exagerados; o crack não é mais perigoso que a cocaína. Em 3 de agosto de 2010, o presidente Obama assinou uma legislação que reduzia a disparidade das sentenças entre crack e cocaína de 100 para 1 em 18 para 1. Esse é um passo importante, mas qualquer disparidade de penas nesse caso, não faz o menor sentido.
Homens negros não são mais linchados por violarem as leis antidrogas, mas eles são assassinados. (Ramarley Graham, o jovem desarmado do Bronx que foi perseguido até o seu banheiro e morto por policias que acreditavam que ele tinha drogas, é apenas um exemplo recente). Mais comum é o dano infligido nos homens negros pela seletividade do cumprimento das leis antidrogas. Presos, encarcerados e colocados sob supervisão da justiça criminal, eles acabam se marginalizados e privados de uma educação. Incrivelmente, um em cada três rapazes negros nascidos hoje, irão passar mais tempo na prisão se os EUA não mudarem seu comportamento atual.
100 anos depois do mito do “espírito maligno da cocaína do negro” ter ajudado a vender o Harrison Act ao Congresso, seu legado ainda vive. Mas agora, ninguém mais tem a desculpa de ignorância para alimentar essas ficções. Já passou do tempo de garantir que as políticas de drogas reflitam a realidade e moralidade, não o racismo.
Fonte: Revista Fórum.
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