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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

40 anos dos blocos afros. O carnaval pode ser diferente!



Apropriado reafirmar a habilidade do carnaval em criar sobre a sociedade civil organizada distrações políticas. Para os grupos de extermínio, traficantes sexuais, homofóbicos, agressores de mulheres e demais expressões criminosas, conjunturas favoráveis aos mais fecundos desempenhos.

É neste marco do calendário de festas, no qual quem anseia exercitar crueldades contra pessoas em situação de rua, profissionais do sexo, adolescentes em liberdade assistida, lésbicas, travestis, gays e negros, sente-se encorajado a fazê-lo tranquilamente, porque nos interessa mais um "lepo, lepo"; até mesmo o mais faminto defensor dos direitos humanos se sacia com chiclete ou com banana.

Rica em cultura e em resistência estética, a capital baiana desta vez promete proporcionar belezas, ritmos, banho de alfazema e reparação, alusivos aos 40 anos dos blocos afros. Com o tema "É diferente. É carnaval de Salvador", a festa convida à valorização da vivência ancestral criativa de um povo antes rejeitado em agremiações de brancos, por não ser uma gente considerada bonita e benquista nas praças da cidade.

Desta exclusão racial e classista, surgem organizações cujas discriminações positivas apresentam a grandeza dos negões africanizados nas ruas do Pelourinho e em Liberdade-Curuzu. Hoje, europeus e celebridades brancas se convidam à beleza negra, ao uso de turbantes e cabelos trançados nagô, imortalizados nas canções do Ilê Aiyê, ao lembrar que "só quem tem patuá não tem medo da guerra, escorrega, levanta e nunca está sozinho".

Em blocos, atrevidos corpos negros desfilaram por quatro decênios, aos repiques do Muzenza contra um racismo que escondia câmeras, apagava luzes, mas não os sorrisos alvos das candaces de uma "raça negra criticada e oprimida, mas com fé e com brilho".

São 40 anos tecidos em realezas, em panos da costa, gincados dos ombros, passos ijexás pelas alas do Malê Debalê ao encontro da paz do Cortejo Afro. Houve tempos proibidos para a negra cultura das ruas pela sua exuberância que ameaçava, e nas TVs éramos invisibilizados, empurrados para sonos das madrugadas. O tempo-espaço ainda é conquistado à indiferença étnica de uma colonialidade do tipo "já vai tarde".

Ao homenagear a inteligência, beleza e a musicalidade dos blocos afros neste carnaval, o bom senso corteja também os negros da marcação de frente da polícia, o descompasso na hora de ensaiar prender trabalhadores cordeiros, ou quiçá, perseguir os rolezinhos pipocas de uma gente jovem, tatuada, periférica e sem abadá.

Antes do espetáculo mais contagiante do planeta, polo turístico de cordialidades interraciais, já está pronto o bloco daquelas e daqueles cuja licença não é para comercializar. Estão instigados a trabalhar autonomamente em prol da construção dos seus ilês.

O carnaval diferente com segurança pública requer comandos policiais sem visões estereotipadas, incapazes de enxergar no boné do jovem negro o fato de ser ele estiloso fora dos dias de sol. No carnaval diferente espera-se uma força armada não desejosa de bater na moçada não branca só por causa dos batidões!

Para ser diferente precisa ser saudável, portanto, espera-se à noite respeito à liberdade sexual, ao direito reprodutivo da moça e ao seu pedido pela pílula do dia seguinte.
Para ser diferente necessita coibir as masculinidades e as respectivas vontades de morte em direção às mulheres. As violências de gênero contra as namoradas, ex-companheiras, tanto por ódio gratuito a tudo que se remete ao feminino, quanto às oposições das jovens vítimas de afetos grosseiros.

Em 2013, no mês da alegria carnavalesca, foram 61 estupros, 138 homicídios e destes últimos, mais 97 tentativas. Por isso, para ser diferente, observem-se, notifiquem-se, encaminhem-se e atendam-se bem e ininterruptamente as mulheres, negros, LGBTS e grupos vulnerabilizados, a citar, aqui, mais as crianças e adolescentes.

O racismo, as violências de gênero e as opressões não descansam. E para ser diferente o carnaval, não se pode brincar com os instrumentos protetivos. É para ser diferente o carnaval de Salvador.

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Carla Akotirene | Assistente social, mestra pela Ufba em estudos de gênero e sobre mulheres


Fonte: ATarde.

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