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‘O rap resgata a autoestima que os pretos não tinham’, diz rapper e professor do Grajaú
Leal Cash mostra, dentro das salas de aula no extremo sul de São
Paulo, como o rap conta mais a história do povo negro do que a própria
escola
Leal Cash no Centro Cultural do Grajaú, importante pico cultural da região | Foto: Paloma Vasconcelos/Ponte Jornalismo
Lucas Volney de Carvalho Silva, 26 anos, sonhava em ser jogador de
futebol. Dormia abraçado com a bola e sabia que, com ela, conseguiria
salvar a si e a sua família. Mas o futuro o surpreendeu positivamente.
Cria da Vila Natal, um dos bairros do Grajaú, distrito do extremo sul da
cidade de São Paulo São Paulo, Lucas agora é Leal. O rapper Leal Cash.
Filho de professora, os primeiros anos do ensino fundamental foram
estudados em uma escola particular na Vila Mariana, a cerca de 35
quilômetros da sua casa, onde sua mãe dava aulas e, por isso, Leal tinha
uma bolsa de estudos. Ele levava duas horas pra chegar no colégio e, se
desse sorte, de duas horas e meia a três horas para voltar, dependendo
do trânsito. Nessa época, Leal começou a se deparar com dois grandes
obstáculos que enfrentaria durante toda sua vida: o racismo e a
discriminação do lugar onde ele nasceu.
“Eu não tinha muito uma vivência da quebrada nessa época, só de fim
de semana que eu ficava com os meus amigos do meu bairro, que era quando
a gente jogava bola, empinava pipa e tal. Aí eu sai dessa escola na
quarta série. Aos 10 anos, na quinta série, eu fui para a escola pública
e comecei a lidar com outro tipo de realidade, que é a minha realidade.
Lá na outra escola era um bagulho utópico, eu tava lá, mas eu não era
de lá e todo mundo ali sabia, por mais que eu fosse inocente na época
hoje é muito nítido que eu não fazia parte daquela realidade”, relembra
Leal.
Foi na escola pública que Leal percebeu que podia escrever música.
Começou com o samba, passou pelo funk e finalmente se encontrou no rap.
As músicas de samba e funk eram pura diversão, que muitas vezes ficavam
só no papel.
Desde muito novo, quando tinha 5 anos, ele via seu tio Cido, conhecido como Comparsa, integrante do grupo de rap Gueto Organizado,
escrever suas próprias músicas. “Então eu já sabia que para você fazer
um rap você precisava de um beat [uma batida], um papel, uma caneta e as
suas próprias ideias”, conta o rapper.
Mas foi a vivência no funk que fez Leal perceber que estava pronto
para começar sua trajetória no hip hop. “No funk eu aprendi a ter
métrica, aprendi a manter o fôlego, a colocar vírgula nas letras. Por
mais que a métrica do funk seja mais parada e o rap seja mais contínua,
eu fui aprendendo ali. Eu parei com o funk quando comecei a ter uma
consciência política. Tinha muita coisa que eu estava escrevendo ali que
eu não vivia e eu não concordava, aí eu parti para o rap, que eu achava
que era muito distante, mas percebi que era bem próximo”, explica.
Em 2009, Leal, que ainda era Lucas, decidiu começar sua carreira no rap ao lado de seu amigo Arthur. Nascia então a dupla Leal & Saaier,
que hoje está em uma pausa para que os integrantes foquem nas suas
carreiras solo. Depois de dois anos parado, desde 2017, Leal decidiu
voltar para a música, dessa vez como Leal Cash. Ainda este mês, Leal
lançará o primeiro EP (Extended Play) solo.
Dos campos para os palcos – e salas de aula
De jogador de futebol, Leal se tornou rapper e professor. Rapper por
amor, professor por curiosidade. Mas Leal, apesar de não ser corintiano,
é fiel ao antigo amor pelo futebol e trouxe no seu primeiro single
muitas lembranças da sua infância.
“Gol de placa”
é o primeiro single da carreira solo do rapper, e fala de futebol, de
videogame e traz referências de como é ser um jovem negro no país onde a
cada 23 minutos alguém como você pode ser morto. “Me jogaram pra selva,
levei uma caneta pra guerra. Meu caderno me tira das trevas” são os
primeiros versos de Leal Cash, ou Sir Cash.
“Eu lancei a ‘Gol de placa’ agora em abril. Eu tô nesse conceito do
‘Superstar Soccer’, que é um jogo de Super Nintendo e representa a minha
infância inteira, tem uma simbologia de amizade e família, porque a
gente jogava junto. Na minha família tinha uma pessoa que tinha o
videogame e todo mundo se reunia pra jogar, a gente nem dormia pra
jogar. Então isso representa muito pra mim”, conta Leal à Ponte.
Quando começou a escrever esse som, Leal sabia quais jogadores iria
citar e porquê. Decidiu homenagear Adriano e Dodô, ex-jogadores do seu
time do coração, o São Paulo Futebol Clube. “Eu cito o Adriano, o
Imperador, porque ele tem uma simbologia muito forte da favela, que
mesmo jogando na Itália ele se sentia melhor no Complexo do Alemão,
então ele representa muito forte a favela e a periferia, por ser um
jogador negro, por ser muito tachado, mas quando ele jogava todo mundo
pagava pau pra ele”, explica o rapper.
“Eu também cito o Dodô, que jogou no São Paulo, no Santos e no
Botafogo, e é conhecido por ser o artilheiros dos gols bonitos, então eu
falo na música que nessa fase atual eu quero só fazer golaço, só gol de
placa. E o termo gol de placa caiu em desuso hoje em dia, mas isso
representa a minha infância”, conta. “Eu peguei essa fase do futebol
mais raiz, sem essas arenas modernas, sem esse futebol modernizado, e
tento colocar isso na minha música. Tento colocar também o que o meu pai
me fala, ele é um jogador de várzea, futebol que tem muita importância
na periferia. Meu tio tem um time, que é o Santa Chica, que representa
muito o lugar de onde eu vim”, continua.
Mas a parte mais importante da música, afirma Leal, é resgatar a
autoestima do povo preto. “O rap vem como um resgate de autoestima que
os pretos não tinham antes, que a quebrada não tinha antes. Eu converso
muito com os mais velhos e eles falam muito isso, então eu quero
resgatar essa autoestima, quero falar que a gente pode ganhar milhão lá
em Milão, a gente pode ser melhor do que ontem, fazendo vários gols de
placa, independente se for na música, se for na faculdade, a gente tem
que fazer o gol de placa, a gente tem que fazer o gol mais bonito, não
pra ser reconhecido, mas pra gente mesmo. A essência da música é isso:
autoestima”, defende o MC.
Leal durante show no Projeto LiteraRap | Foto: Alex Soares/Divulgação
Foi o rap que levou Leal, ou melhor, Lucas, para as salas de aula.
Primeiro como estudante no curso de História na Unisa (Universidade de
Santo Amaro), e, depois, como professor na Escola Estadual Herbert
Baldus, mesmo colégio onde ele concluiu o ensino médio.
“É muito triste isso que eu vou falar, mas eu comecei História porque
eu escutava rap e não conhecia as referências. A escola não me trouxe
essas referências. Não tinha nada sobre a história do povo negro na
escola, mesmo com a lei até hoje não é muito propagado dentro da escola.
Na minha época eu via pessoas negras só sendo escravizadas, só servindo
alguém, nunca com protagonismo. Quando eu comecei a escutar mais rap,
comecei a ir atrás dessas referências. Eu estudava mais por conta do que
na escola”, desabafa.
“Fazer História foi a melhor coisa que eu fiz da minha vida. Eu me
descobri e me reinventei como ser humano. Eu tentei me tornar um cidadão
melhor, me livrei de muitos preconceitos que eu tinha. É lógico que eu
tô em construção e desconstrução a cada momento, que em certos momentos
eu me pego falando alguma coisa errada, porque eu sou um homem hétero.
Eu aprendi a ser machista. Por isso tô me construindo e desconstruindo
frequentemente e a faculdade de História me ajudou muito nisso”,
continua.
Consciente de que há muita defasagem na rede pública de ensino, Leal
conta que não era um bom aluno porque não se sentia abraçado pela
escola. “Eu não prestava atenção, não tinha muito interesse nas
matérias. Eu tinha outros interesses e a escola não dava conta deles,
desse meu conhecimento prévio. A escola nunca me abraçou. A escola foi
algo que mais me aprisionou as minhas ideias, mais roubou os meus sonhos
do que tudo”, explica.
Atualmente, Lucas leciona na escola em que concluiu os seus estudos. E
ele usa isso como parte da aula: mostrar a importância de ser um
morador de periferia, ser jovem e dialogar com os alunos. “Os
professores que me deram aula são meus colegas de trabalho. Eu não era
tão bom na matéria do meu professor e agora tô na sala dos professores
com ele. E eu falo isso para os meus alunos. Agora eles não se
interessam por estudos, mas daqui um tempo eles vão ser cobrados por
isso. A gente, por ser da periferia, por ser do fundão, é cobrado dez
vezes mais, saca? E não temos estrutura nenhuma pra ser cobrados dessa
forma. Eu passo isso pra eles”, relata.
“Eu sou novo, então tenho uma linguagem muito próxima com eles. Eles
me veem como se eu fosse um irmão. Eu tô dando aula de manhã, que é pra
galera do sétimo, oitavo e nono ano do ensino fundamental e pro primeiro
ano do ensino médio. Eu tô com 26. Eu compreendo os alunos que não
querem estudar, mas uma hora eles vão ser cobrados. A gente tem um
processo, não podemos correr além do tempo. Isso vai pesar. Alguns
assuntos que eu falo em sala de aula e eles acham chato, uma hora eles
vão ver que não é um assunto chato”, critica Leal.
‘Me sinto preso pra falar sobre certas coisas’
Em tempos de “Escola sem partido”, “Kit gay” e “Ideologia de gênero”,
ser professor na rede pública é um desafio diário. Ainda mais quando,
ao mesmo tempo que dá aulas, você faz parte do estilo musical mais
crítico aos governos e perseguido por isso. Essa é a rotina de Leal.
“Tanto no rap quanto na escola eu me sinto preso pra falar sobre
certas coisas, mas a gente não tem que se sentir preso, tem que se
sentir cada vez mais liberto pra falar, temos que nos posicionar e não
ficar em cima do muro”, brada o professor MC.
Um de seus últimos sons, aliás, fala bastante sobre isso. A música “Poder paralelo“,
que Leal canta ao lado do Gueto Organizado, fala da importância da
quebrada no contexto político atual. “Eu fiz essa letra tem dois anos,
mas ela fala muito sobre o momento atual. A gente tava prevendo o que ia
acontecer, pra onde ia dar. Quando a gente fala de poder paralelo
estamos falando do gueto, aqui é o poder paralelo. Temos o nosso próprio
poder, nosso empreendedorismo. A gente só precisa da gente”, explica.
“Em todos os governos a gente protestou, tá ligado? Até nos governos
mais de esquerda a gente estava nas ruas e não é agora que a gente vai
sair. Se a gente não for resistência, de fato, as coisas vão só piorar.
Um ponto positivo disso [governo Bolsonaro] é que as máscaras caíram,
agora a gente sabe daquele tio que é homofóbico, aquele tio que fazia
piadinha com novinha e sabe que ele é um pedófilo. Os lados agora estão
bem mais explícitos. A gente consegue ver o nosso inimigo. A gente
sempre lidou com o fascismo, mas agora a gente tá com armadura pra quem é
o nosso inimigo”, protesta Leal.
O rapper questiona também o racismo no Brasil, principalmente o
racismo velado, aquele preconceito que não é explícito, que sempre foi
que queixa dos movimentos negros. Para Leal, o governo Bolsonaro também
trouxe à tona os racismos.
“O Brasil é um país super racista, mas todo mundo fala que não é
racista. Dizem ‘seu cabelo é duro, mas é uma brincadeira’. Não, é
racismo. Diversos humoristas usam racismo pra fazer humor, mas não
existe piada, é racismo. Racismo não é piada, homofobia não é piada.
Agora a gente sabe quem é quem, não tá mais velado. Mas isso é bom, tá
ligado, agora a gente consegue se proteger mais e a gente consegue
acolher mais quem tá do nosso lado. E isso é muito importante”.
Leal durante show no Projeto LiteraRap | Foto: Alex Soares/Divulgação
Jovem negro, rapper, professor e morador de quebrada, Leal conta que
tem medo da Polícia Militar. “A gente não enxerga a Polícia Militar como
nossa aliada. É triste falar isso, porque eu queria que ela fosse nosso
braço forte, que fizessem a nossa segurança como fazem dos ricos. Eles
são braço forte do governo e o governo é braço forte dos mais ricos.
Eles veem pra periferia só pra dar esculacho. É triste isso. Na
periferia a gente não enxerga isso como uma coisa boa, não traz
benefício pra gente. Eu me sinto até inseguro de falar isso, mas a gente
tá aqui pra dar cara a tapa, desde o começo o hip hop é isso”.
“Enquanto tiver injustiça, enquanto tiverem matando um dos nossos eu
vou falar. Não vou me esconder. Foda-se quem tiver no poder. Que seja um
militar, um baba ovo de militar, seja se direita ou esquerda, se tiver
matando o nosso povo, se tiver matando um dos nossos, eu vou sempre
falar. Isso não é de agora. A gente é mira, independente do governo.
Isso é questão de ser o povo preto. A gente vem sofrendo desde a
escravidão”, defende o rapper à Ponte.
“Os 111 tiros foi um som importante, é um dos sons que eu mais gosto,
porque a gente fala sobre esse fato que nos deixou indignados. A
justiça é pra quem? O militarismo é pra quem? Eles pedem ditadura
militar, mas na favela tem ditadura militar, sempre teve. Essa ditadura
que eles querem vai lá pro centro? Vai ter exército na Paulista? Eu acho
que não, né. Os 111 tiros representa isso. A gente fez um show esses
dias no centro da cidade e voltou de madrugada, cheio de preto no carro,
e os 111 tiros podia ser ali. A gente não tava fazendo nada, mas mesmo
inocente a gente fica com medo”, indaga.
“Até quando vão matar o nosso povo? Os 111 tiros acabaram com cinco famílias. Os 80 tiros
[disparados contra o músico Evaldo Rosa] acabaram com uma família. A
gente tem que ficar falando sobre a mesma coisa porque não tá mudando,
só tá piorando, por isso temos que continuar fazendo esse trabalho de
base. Temos que ser resistência, não podemos parar, a luta tem que ser
diária”, continua Leal.
Grajaú: ‘Não viamos só como a quebrada do Criolo’
Desde que Criolo bombou no rap, o distrito do Grajaú, extremo sul de
SP, passou a ser conhecida nacionalmente. Mas, para quem nasceu e
cresceu na quebrada, a imagem é outra. “A gente, aqui de dentro, não via
como a quebrada do Criolo, a gente via como a quebrada do Criolo, a
quebrada do Xemalami, a quebrada do Gueto Organizado, a quebrada do Pentágono.
A gente do Grajaú já se via como um polo artístico muito forte, porque a
gente faz um trabalho de base muito forte. Todo fim de semana tem
evento. O Criolo deu um boom e começaram a enxergar aqui com outros
olhos, foi a mesma fita do Capão Redondo que era visto só como um bairro
perigoso e com os Racionais virão que ali tinha cultura”, critica Leal
Cash.
Para ele, as pessoas olham a periferia de cima e veem só as
estatísticas e números, sem se importar se ali tem trabalhadores ou
cultura. Mas afirma: no Grajaú ainda tem muito talento escondido ainda.
“O Criolo foi importante pra olharem pra cá com outros olhos. Os
espaços nem sempre estavam abertos pra gente, agora que estamos
conseguindo ocupa-los. A gente que vive aqui no Grajaú conheceu o
Criolo bem antes dele ser o Criolo. Ele era o Criolo doido, o Kleber pra
gente, o filho da Maria Vilani. A Maria Vilani é uma referência máxima
pra gente daqui da quebrada, esse espaço onde estamos ela é uma das
fundadoras, ela tem rodas de poesia aqui até hoje. Ela já era uma
referência monstra e os filhos dela também são. O Criolo surgiu disso,
de um berço abençoado. Os pais deles são pessoas super gente boa”,
explica.
Leal
Cash em frente ao Centro de Cultura do Grajaú, espaço que se tornou uma
referência cultural da região | Foto: Paloma Vasconcelos/Ponte
Jornalismo
“Aqui no Centro Cultural do Grajaú tá tendo evento direto. Trazendo
coisas diversificadas, não só com o rap, mas com samba e MPB, porque a
periferia é isso, sabe? É multicultural. Eu faço rap, mas meu pai ouve
samba, minha mãe ouve música gospel, meu vizinho ouve forró. A periferia
é isso, são pessoas de vários estados que estão instaladas aqui. Temos
que respeitar essas pessoas, não só o meu gosto”, defende o rapper.
“Eu acho muito louco ter o Rico Dalasam e Quebrada Queer. Quando
surgiu o Rico eu cheguei nos meus amigos e falei: o rap tá dando um
passo, tá ligado? O rap precisava do Rico Dalasam, o rap precisa ser
mais plural. O que o Rimas e Melodias fez é muito importante. O que o
Graja Minas tá fazendo aqui é muito foda”, cita Leal.
“Eu sempre apoio. Não quero ver só pessoas brancas no rap, quero ver
pessoas negras ganhando igual pessoas brancas, quero ver mulheres
ganhando cachês igual os caras. Eu fico muito feliz quando surgem novos
grupos com pessoas LGBTs, porque o rap é isso, rap é união, a gente tem
um inimigo e o inimigo é o sistema, é o sistema que fode a gente”,
finaliza o rapper.
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