por Barbara Rodrigues,
Essa é a história fictícia (só que não) de uma menina preta, de cinco anos de idade. A garotinha iniciava sua primeira experiência na pré-escola, estava entusiasmada com a possibilidade de conhecer outras crianças e aprender novas coisas. Nessa idade, já havia sido alfabetizada por sua mãe. Apesar da idade, sentia-se “Ser” no mundo.
A tia da perua (Bia) tinha o apelido de Xuxa, por conta de olhos azuis, cabelo loiro e curto. Bia, sempre fazia o rodízio das crianças que poderiam sentar no banco da frente da perua, cada criança teria sua vez um dia da semana. No entanto, a garotinha preta nunca pode sentar no banco da frente, seu dia era preenchido com outra menina, loira, cabelos cacheados, pele branca e olhos verdes, ao ressaltar sua beleza, enfatizava que ela poderia andar no banco da frente mais de uma vez.
Sempre ao chegar ao “Pré” a tia da perua desmanchava a trança da garotinha preta. Refazia o penteado que sua mãe havia feito com esmero, sempre alegando: “sua mãe não arruma o seu cabelo direito”. Apesar de nunca ter se falado em raça, cabelo crespo, pele preta e racismo, a agressão estava implícita na maneira de tratar, no manejo das situações diárias, na comparação e no tratamento. Para uma ótima entendedora, palavras não eram necessárias.
Não sabemos exatamente quando, e como o racismo vai se apresentar para as nossas crianças, mas a iminência da sua chegada é uma certeza para todas nós. Segundo dados da Unicef de 2010, aproximadamente 54,5% das crianças e adolescentes no Brasil, são negras ou indígenas. Embora a pobreza no Brasil seja referida é citada, inclusive em pesquisas, de forma generalista, dados estatísticos demonstram que ela tem cor e especificidades.
Apesar da pouca produção científica, que nos traga dados variados a respeito do racismo e infância, alguns estudos nos mostram a configuração desse quadro no Brasil. Apesar da retórica da classe dominante, temos vários dados de pesquisa que apontam como a instituição educacional é aparelho de exclusão e cerceamento.
Quando em meio ao convívio com outras crianças ainda nas fases iniciais da pré-escola, crianças negras passam por diversas experiências de racismo velado, baseado em uma linguagem não-verbal, por meio de atitudes, gestos e tons de voz que reforçam o racismo e a rejeição por parte das crianças negras em relação ao seu pertencimento racial Oliveira e Abramowicz (2010).
Dessa forma, a todo momento é confrontada com modelos negativos que a hostiliza, silencia e rouba a possibilidade de sentir-se pertencente aquele grupo social. Os conteúdos hostis passam a ser internalizados e incorporados a identidade de forma negativa.
Primordialmente é negado o direito a existir em sua totalidade e unicidade. A criança internaliza muito cedo a necessidade de lançar mão de quem se é, para vir a ser uma versão caricata de si mesma, elaborando mecanismos para sobreviver as agressões. Nesse processo de expropriação da identidade racial, a criança é submetida a situações adversas. É comum o sentimento de menos-valia, inadequação e rejeição.
Esse é um processo de grande sofrimento psicológico. A criança tem os espaços negados, passa a perceber seu lugar no mundo a partir de uma perspectiva de expectador de sua própria história, à parte, sem poder de decisão e ação. Por isso, negar seus próprios traços, sua cor de pele, e descendência passa a ser uma defesa. É um meio de sobrevivência a sensação de aniquilamento do “Eu”.
Podemos comprovar esse quadro, quando observado a pesquisa com crianças em idade de pré-escolar: Souza (2002), aponta que as crianças negras revelaram, muitas vezes, o desejo de serem brancas, de cabelo liso, querendo se comparar com os personagens das histórias infantis, reforçando a imagem que a criança negra faz de si, evidenciando a negação de sua condição racial.
Como fortalecer nossas crianças?
Com absoluta certeza, a promoção de políticas públicas nos espaços sociais será de grande valia no que diz respeito a proteção e saúde mental das crianças negras, entretanto, sabemos que o racismo possui raízes profundas, e não podemos esperar que a esfera pública se transforme, por isso, precisamos fortalecer nossas crianças antes mesmo que tenham contato com o meio social amplo.
Infelizmente por uma série de questões, inclusive culturais, as crianças não possuem repertorio para enfrentar esse ciclo de agressão. Não se fala sobre raça, cor e posição social dentro da família. Muito desse comportamento se deve a uma falsa proteção contra o racismo: nega-se a origem e os traços para sofrer menos e ser melhor aceito. Entretanto, como os dados de pesquisa mostram, não existe sofrimento amenizado.
Construímos a imagem que temos de nós, tomando como referência os as pessoas mais próximas de nossa relação, por isso falaremos sobre Família.
Ao longo do desenvolvimento a criança se constrói como sujeito e se identifica como “Eu”, a partir da relação com o outro. Nesse processo, que acontece ainda nos primeiros anos de vida, é necessário que a criança se sinta segura do amor de seus pais ou cuidadores, que ela saiba que sua casa é o seu território.
Antes mesmo de estar inserida em meio social, a grande referência de espaço de fala e de pertencimento é o ambiente familiar. É nesse espaço que ela deve sentir-se segura, ser ouvida e acolhida, independente do que faça ou como haja.
É preciso falar sobre raça. Ainda cedo é importante que a criança tenha contato com figuras representativas, nas quais ela se reconheça: historias, brinquedos, jogos, tudo que favoreça a imaginação e ofereça boas referências. É importante que ela desenvolva autonomia sobre si e sobre suas decisões.
Referências Bibliográficas
Essa é a história fictícia (só que não) de uma menina preta, de cinco anos de idade. A garotinha iniciava sua primeira experiência na pré-escola, estava entusiasmada com a possibilidade de conhecer outras crianças e aprender novas coisas. Nessa idade, já havia sido alfabetizada por sua mãe. Apesar da idade, sentia-se “Ser” no mundo.
A tia da perua (Bia) tinha o apelido de Xuxa, por conta de olhos azuis, cabelo loiro e curto. Bia, sempre fazia o rodízio das crianças que poderiam sentar no banco da frente da perua, cada criança teria sua vez um dia da semana. No entanto, a garotinha preta nunca pode sentar no banco da frente, seu dia era preenchido com outra menina, loira, cabelos cacheados, pele branca e olhos verdes, ao ressaltar sua beleza, enfatizava que ela poderia andar no banco da frente mais de uma vez.
Sempre ao chegar ao “Pré” a tia da perua desmanchava a trança da garotinha preta. Refazia o penteado que sua mãe havia feito com esmero, sempre alegando: “sua mãe não arruma o seu cabelo direito”. Apesar de nunca ter se falado em raça, cabelo crespo, pele preta e racismo, a agressão estava implícita na maneira de tratar, no manejo das situações diárias, na comparação e no tratamento. Para uma ótima entendedora, palavras não eram necessárias.
Não sabemos exatamente quando, e como o racismo vai se apresentar para as nossas crianças, mas a iminência da sua chegada é uma certeza para todas nós. Segundo dados da Unicef de 2010, aproximadamente 54,5% das crianças e adolescentes no Brasil, são negras ou indígenas. Embora a pobreza no Brasil seja referida é citada, inclusive em pesquisas, de forma generalista, dados estatísticos demonstram que ela tem cor e especificidades.
Apesar da pouca produção científica, que nos traga dados variados a respeito do racismo e infância, alguns estudos nos mostram a configuração desse quadro no Brasil. Apesar da retórica da classe dominante, temos vários dados de pesquisa que apontam como a instituição educacional é aparelho de exclusão e cerceamento.
Quando em meio ao convívio com outras crianças ainda nas fases iniciais da pré-escola, crianças negras passam por diversas experiências de racismo velado, baseado em uma linguagem não-verbal, por meio de atitudes, gestos e tons de voz que reforçam o racismo e a rejeição por parte das crianças negras em relação ao seu pertencimento racial Oliveira e Abramowicz (2010).
Dessa forma, a todo momento é confrontada com modelos negativos que a hostiliza, silencia e rouba a possibilidade de sentir-se pertencente aquele grupo social. Os conteúdos hostis passam a ser internalizados e incorporados a identidade de forma negativa.
Primordialmente é negado o direito a existir em sua totalidade e unicidade. A criança internaliza muito cedo a necessidade de lançar mão de quem se é, para vir a ser uma versão caricata de si mesma, elaborando mecanismos para sobreviver as agressões. Nesse processo de expropriação da identidade racial, a criança é submetida a situações adversas. É comum o sentimento de menos-valia, inadequação e rejeição.
Esse é um processo de grande sofrimento psicológico. A criança tem os espaços negados, passa a perceber seu lugar no mundo a partir de uma perspectiva de expectador de sua própria história, à parte, sem poder de decisão e ação. Por isso, negar seus próprios traços, sua cor de pele, e descendência passa a ser uma defesa. É um meio de sobrevivência a sensação de aniquilamento do “Eu”.
Podemos comprovar esse quadro, quando observado a pesquisa com crianças em idade de pré-escolar: Souza (2002), aponta que as crianças negras revelaram, muitas vezes, o desejo de serem brancas, de cabelo liso, querendo se comparar com os personagens das histórias infantis, reforçando a imagem que a criança negra faz de si, evidenciando a negação de sua condição racial.
Como fortalecer nossas crianças?
Com absoluta certeza, a promoção de políticas públicas nos espaços sociais será de grande valia no que diz respeito a proteção e saúde mental das crianças negras, entretanto, sabemos que o racismo possui raízes profundas, e não podemos esperar que a esfera pública se transforme, por isso, precisamos fortalecer nossas crianças antes mesmo que tenham contato com o meio social amplo.
Infelizmente por uma série de questões, inclusive culturais, as crianças não possuem repertorio para enfrentar esse ciclo de agressão. Não se fala sobre raça, cor e posição social dentro da família. Muito desse comportamento se deve a uma falsa proteção contra o racismo: nega-se a origem e os traços para sofrer menos e ser melhor aceito. Entretanto, como os dados de pesquisa mostram, não existe sofrimento amenizado.
Construímos a imagem que temos de nós, tomando como referência os as pessoas mais próximas de nossa relação, por isso falaremos sobre Família.
Ao longo do desenvolvimento a criança se constrói como sujeito e se identifica como “Eu”, a partir da relação com o outro. Nesse processo, que acontece ainda nos primeiros anos de vida, é necessário que a criança se sinta segura do amor de seus pais ou cuidadores, que ela saiba que sua casa é o seu território.
Antes mesmo de estar inserida em meio social, a grande referência de espaço de fala e de pertencimento é o ambiente familiar. É nesse espaço que ela deve sentir-se segura, ser ouvida e acolhida, independente do que faça ou como haja.
É preciso falar sobre raça. Ainda cedo é importante que a criança tenha contato com figuras representativas, nas quais ela se reconheça: historias, brinquedos, jogos, tudo que favoreça a imaginação e ofereça boas referências. É importante que ela desenvolva autonomia sobre si e sobre suas decisões.
Referências Bibliográficas
- SILVA, V. A.; ANDRADE, L. H. C. Considerações sobre o corpo em Lacan. Estudos em Psicologia São Paulo. n. 1, p. 143-149, 2002.
- LOPES, S.C.J.; A vivencia do Racismo e do Sexismo na Infância e na Adolescência e a Construção da Identidade das Meninas Negras. Cadernos Imbondeiro. João Pessoa, v.2, n.1, 2012.
- MÁXIMO, O.C.A.T; Vieira, L. R.C.F.L; Lins, B.L.S. Processos de identidade social e exclusão racial na infância. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 18, n. 3, p. 507-526, dez. 2012.
- CIAMPA, Antônio da Costa. Identidade. In: W. Codo & S. T. M Lane (Orgs.). Psicologia social: o homem em movimento (pp. 58-75), São Paulo: Brasiliense, 1984.
- ABRAMOWICZ, A; Oliveira, F. Um estudo sobre a creche: o que as Práticas educativas produzem e revelam sobre a questão racial?. 2004. 112. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de São Carlos. São Paulo. 2004.
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Imagem destacada – Arquivo pessoal
*Barbara Rodrigues
Mulher negra, aos vinte e nove anos de intensas vivências. Em constante transformação e conhecimento interno. Mãe da Alice, agora com três mêsinhos e meio. Psicóloga em um relacionamento sério com a profissão. Apaixonada pelo ser-humano e tudo que podemos vir a ser. Eternamente comprometida em ajudar pessoas a lapidar o melhor de si. Formada por meio do programa de cotas do PROUNI, primeira turma de 2005. Ex-concurseira assumida, e atual funcionaria estadual. Dedicada a árdua tarefa de ajudar pessoas em sofrimento psíquico, oriundas do sistema penitenciário do Estado de São Paulo, expropriadas do seu direito de decidir, e diagnosticadas com doença mental. Idealizadora do projeto Psiquê Preta, carinhosamente construindo para a promoção da saúde emocional e empoderamento de mulheres negras.
Imagem destacada – Arquivo pessoal
*Barbara Rodrigues
Mulher negra, aos vinte e nove anos de intensas vivências. Em constante transformação e conhecimento interno. Mãe da Alice, agora com três mêsinhos e meio. Psicóloga em um relacionamento sério com a profissão. Apaixonada pelo ser-humano e tudo que podemos vir a ser. Eternamente comprometida em ajudar pessoas a lapidar o melhor de si. Formada por meio do programa de cotas do PROUNI, primeira turma de 2005. Ex-concurseira assumida, e atual funcionaria estadual. Dedicada a árdua tarefa de ajudar pessoas em sofrimento psíquico, oriundas do sistema penitenciário do Estado de São Paulo, expropriadas do seu direito de decidir, e diagnosticadas com doença mental. Idealizadora do projeto Psiquê Preta, carinhosamente construindo para a promoção da saúde emocional e empoderamento de mulheres negras.
Fonte: Blogueirasnegras
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