Antes que você mergulhe no texto do cientista social e jornalista Felipe Milanez, eu – Mônica Nunes, uma das editoras e cofundadoras do site Conexão Planeta – quero contar porque o escolhi para falar do filme Martírio, de Vincent Carelli, aqui no site.
Assisti ao documentário na abertura da Aldeia SP – Bienal de Cinema Indígena, em 6/10. Foi a primeira exibição do filme em São Paulo, depois de passar pelo Festival Internacional do Cinema de Brasília, há duas semanas, onde arrancou aplausos emocionados da plateia. Em São Paulo não foi diferente. O filme de mais de duas horas (não senti passar o tempo) é um soco (bem dado) no estômago, um grito de socorro, uma denúncia urgente, mas também uma reverência aos povos indígenas, em especial aos Guarani Kaiowa, seus protagonistas.
Desejava muito ver este trabalho de Carelli – que admiro desde que descobri o projeto Vídeo nas Aldeias, em 2008 – e escrever sobre ele. Mas, ao final do filme, decidi publicar o artigo que Felipe escreveu para sua coluna no site da revista Carta Capital (publicado em 22/9), logo após a exibição em Brasília. E o faço com algumas licenças como a troca da imagem de abertura e do título.
Troquei o título original – Martírio: um filme para indignar Brasília – pelo de outro texto que Felipe escreveu em 2013, também para o mesmo site, quando entrevistou Carelli: Martírio, um filme que o Brasil precisa ver. Nessa época, o documentário ainda estava sendo finalizado e acabava de ser bem sucedido em uma campanha de financiamento coletivo, que não só garantiu sua conclusão, mas também permitiu equipar os índios com câmeras fotográficas para que registrassem os ataques promovidos por fazendeiros.
No artigo a seguir, Felipe diz muito do que sinto e penso sobre a última obra de Vincent Carelli, a segunda de uma trilogia. Com sua escrita afiada – entre outros recursos -, Felipe luta pelos povos indígenas há muitos anos. Admiro sua garra e sou grata pela generosidade com que aceitou meu convite para compartilhar suas reflexões também com os leitores do Conexão. Boa leitura!
Assisti ao documentário na abertura da Aldeia SP – Bienal de Cinema Indígena, em 6/10. Foi a primeira exibição do filme em São Paulo, depois de passar pelo Festival Internacional do Cinema de Brasília, há duas semanas, onde arrancou aplausos emocionados da plateia. Em São Paulo não foi diferente. O filme de mais de duas horas (não senti passar o tempo) é um soco (bem dado) no estômago, um grito de socorro, uma denúncia urgente, mas também uma reverência aos povos indígenas, em especial aos Guarani Kaiowa, seus protagonistas.
Desejava muito ver este trabalho de Carelli – que admiro desde que descobri o projeto Vídeo nas Aldeias, em 2008 – e escrever sobre ele. Mas, ao final do filme, decidi publicar o artigo que Felipe escreveu para sua coluna no site da revista Carta Capital (publicado em 22/9), logo após a exibição em Brasília. E o faço com algumas licenças como a troca da imagem de abertura e do título.
Troquei o título original – Martírio: um filme para indignar Brasília – pelo de outro texto que Felipe escreveu em 2013, também para o mesmo site, quando entrevistou Carelli: Martírio, um filme que o Brasil precisa ver. Nessa época, o documentário ainda estava sendo finalizado e acabava de ser bem sucedido em uma campanha de financiamento coletivo, que não só garantiu sua conclusão, mas também permitiu equipar os índios com câmeras fotográficas para que registrassem os ataques promovidos por fazendeiros.
No artigo a seguir, Felipe diz muito do que sinto e penso sobre a última obra de Vincent Carelli, a segunda de uma trilogia. Com sua escrita afiada – entre outros recursos -, Felipe luta pelos povos indígenas há muitos anos. Admiro sua garra e sou grata pela generosidade com que aceitou meu convite para compartilhar suas reflexões também com os leitores do Conexão. Boa leitura!
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por Felipe Milanez
Há um momento no documentário Martírio (2016, 160 min), de Vincent Carelli – e peço licença se estragar alguma surpresa, mas este ponto que quero destacar está também na foto abaixo (reprodução do filme) -, quando um indígena Kaiowa diz: “O que tá pegando a gente é o capitalismo“.
Desde que assisti Martírio, em um encontro com Carelli em Olinda (PE), poucas semanas atrás, essa frase, dita nesse contexto, por essa voz no belo ritmo da língua guarani, não sai da minha cabeça. O capitalismo está pegando os indígenas.
Tal como um monstro – em uma analogia feita por Ailton Krenak que disse que é “quando o mercado acorda de mau humor e quer comer uma montanha” –, os Kaiowa e Guarani fazem uma precisa análise da situação em que se encontram e procuram traçar estratégias de autonomia e liberdade. Mas, como enfrentar o capitalismo que também é responsável pela destruição cultural, além da física e outras dimensões que afligem os indígenas?
Em 22/9, o documentário Martírio será exibido pela primeira vez no Brasil, no Festival Internacional de Cinema de Brasília. Este é o segundo filme da trilogia de Carelli – indigenista, documentarista e criador do projeto Vídeo nas Aldeias – ainda em andamento. O primeiro foi Corumbiara (que conta sobre o massacre de índios na Gleba de Corumbiara, em Rondônia, em 1985, denunciada pelo indigenista Marcelo Santos), o segundo, Martírio, e o final será Adeus, Capitão.
Diferentemente dos filmes do projeto Vídeo nas Aldeias, esta trilogia se baseia em longo trabalho investigativo de Carelli: são filmes produzidos ao longo de três décadas, que revelam sua visão a respeito da luta indígena, apresentada em meio a profundas mudanças no país.
A trilogia de Vincent é, ao mesmo tempo, material histórico do registro de um tempo, da transição da ditadura para a democracia, em um processo no qual os povos indígenas foram constantemente excluídos das garantias aos direitos fundamentais e do acesso aos aparelhos do Estado, sempre mantidos de forma privilegiada nas mãos de poucos e brancos.
Em 2013, escrevi texto nesta mesma coluna – Martírio: um filme que o Brasil precisa ver – para apoiar o financiamento coletivo adotado por Carelli para a realização desse documentário, que conseguiu superar a meta e arrecadar R$ 85 mil. Os recursos foram insuficientes para a produção de todo o filme, mas fundamentais para avançar na sua produção e também ajudar a equipar os acampamentos dos indígenas em situação de risco e permanente ameaça, para que eles registrassem os ataques e pudessem mostra-los ao Brasil.
Naquela ocasião, entrevistei Carelli, que me disse: “Agora, com essa tragédia com os Guarani Kaiowa, é preciso fazer algo, e o cinema é uma ferramenta poderosa, aprendi isso com Corumbiara. Não é por gosto que tenho tratado do tema da violência contra os índios, mas por imposição dos acontecimentos”.
Eu já imaginava e, por isso, sugeri – no título do artigo – que Martírio era “um filme que o Brasil precisa ver”. Agora, pronto e finalizado, o Brasil precisa ver, mesmo!
Carelli diz que fez o documentário “por imposição dos acontecimentos” e, assim, concluiu uma obra extraordinária. Bastante longo, Martírio é denso e profundo, ao mesmo tempo conduzido com uma contraditória suavidade que nos permite acompanhar seus passos, nos indignar, mas sempre com um grande respeito aos personagens e às reflexões apresentadas.
É um documentário que traduz a profunda indignação que tem caracterizado a vida de Vincent Carelli: essa imposição de gritar, de se indignar, se insurgir, da revolta contida dentro do peito desde a primeira vez em que ele esteve entre os Kaiowa e Guarani, nos anos 1980.
Martírio é um filme-evento. Vincent nos conduz ao coração das trevas do agronegócio e nos mostra a luz e a beleza que move os Kaiowa e Guarani a lutarem para existir. Essa luz é expressa pelas reflexões, pelos cantos, pela religiosidade sempre presente e marcante, e uma epistemologia extremamente sofisticada, uma forma de ver, analisar e pensar o mundo que é única.
Martírio traz uma profundidade inédita na cinematografia sobre a luta Guarani e Kaiowa. É um documentário também filmado de dentro, junto e pelos indígenas. E traz o que se pode chamar de o “outro lado” do genocídio através dos vômitos racistas no Congresso Nacional, das cenas deploráveis de um leilão da morte – que reuniu Kátia Abreu, ministra da Agricultura, e ruralistas – e da fala mansa dos matadores.
Afinal, o genocídio é um ato em que um grupo tenta exterminar outro, acabar com a existência de um povo. Neste caso, o lado genocida, materializado pelas balas dos pistoleiros e dos grupos de extermínio e empresas de segurança, é composto por fazendeiros, ruralistas, e também pela omissão e ação do Estado. A culpa histórica do Estado pelos eventos que levam ao martírio guarani é apresentada com precisão histórica e farta documentação.
por Felipe Milanez
Há um momento no documentário Martírio (2016, 160 min), de Vincent Carelli – e peço licença se estragar alguma surpresa, mas este ponto que quero destacar está também na foto abaixo (reprodução do filme) -, quando um indígena Kaiowa diz: “O que tá pegando a gente é o capitalismo“.
Desde que assisti Martírio, em um encontro com Carelli em Olinda (PE), poucas semanas atrás, essa frase, dita nesse contexto, por essa voz no belo ritmo da língua guarani, não sai da minha cabeça. O capitalismo está pegando os indígenas.
Tal como um monstro – em uma analogia feita por Ailton Krenak que disse que é “quando o mercado acorda de mau humor e quer comer uma montanha” –, os Kaiowa e Guarani fazem uma precisa análise da situação em que se encontram e procuram traçar estratégias de autonomia e liberdade. Mas, como enfrentar o capitalismo que também é responsável pela destruição cultural, além da física e outras dimensões que afligem os indígenas?
Em 22/9, o documentário Martírio será exibido pela primeira vez no Brasil, no Festival Internacional de Cinema de Brasília. Este é o segundo filme da trilogia de Carelli – indigenista, documentarista e criador do projeto Vídeo nas Aldeias – ainda em andamento. O primeiro foi Corumbiara (que conta sobre o massacre de índios na Gleba de Corumbiara, em Rondônia, em 1985, denunciada pelo indigenista Marcelo Santos), o segundo, Martírio, e o final será Adeus, Capitão.
Diferentemente dos filmes do projeto Vídeo nas Aldeias, esta trilogia se baseia em longo trabalho investigativo de Carelli: são filmes produzidos ao longo de três décadas, que revelam sua visão a respeito da luta indígena, apresentada em meio a profundas mudanças no país.
A trilogia de Vincent é, ao mesmo tempo, material histórico do registro de um tempo, da transição da ditadura para a democracia, em um processo no qual os povos indígenas foram constantemente excluídos das garantias aos direitos fundamentais e do acesso aos aparelhos do Estado, sempre mantidos de forma privilegiada nas mãos de poucos e brancos.
Em 2013, escrevi texto nesta mesma coluna – Martírio: um filme que o Brasil precisa ver – para apoiar o financiamento coletivo adotado por Carelli para a realização desse documentário, que conseguiu superar a meta e arrecadar R$ 85 mil. Os recursos foram insuficientes para a produção de todo o filme, mas fundamentais para avançar na sua produção e também ajudar a equipar os acampamentos dos indígenas em situação de risco e permanente ameaça, para que eles registrassem os ataques e pudessem mostra-los ao Brasil.
Naquela ocasião, entrevistei Carelli, que me disse: “Agora, com essa tragédia com os Guarani Kaiowa, é preciso fazer algo, e o cinema é uma ferramenta poderosa, aprendi isso com Corumbiara. Não é por gosto que tenho tratado do tema da violência contra os índios, mas por imposição dos acontecimentos”.
Eu já imaginava e, por isso, sugeri – no título do artigo – que Martírio era “um filme que o Brasil precisa ver”. Agora, pronto e finalizado, o Brasil precisa ver, mesmo!
Carelli diz que fez o documentário “por imposição dos acontecimentos” e, assim, concluiu uma obra extraordinária. Bastante longo, Martírio é denso e profundo, ao mesmo tempo conduzido com uma contraditória suavidade que nos permite acompanhar seus passos, nos indignar, mas sempre com um grande respeito aos personagens e às reflexões apresentadas.
É um documentário que traduz a profunda indignação que tem caracterizado a vida de Vincent Carelli: essa imposição de gritar, de se indignar, se insurgir, da revolta contida dentro do peito desde a primeira vez em que ele esteve entre os Kaiowa e Guarani, nos anos 1980.
Martírio é um filme-evento. Vincent nos conduz ao coração das trevas do agronegócio e nos mostra a luz e a beleza que move os Kaiowa e Guarani a lutarem para existir. Essa luz é expressa pelas reflexões, pelos cantos, pela religiosidade sempre presente e marcante, e uma epistemologia extremamente sofisticada, uma forma de ver, analisar e pensar o mundo que é única.
Martírio traz uma profundidade inédita na cinematografia sobre a luta Guarani e Kaiowa. É um documentário também filmado de dentro, junto e pelos indígenas. E traz o que se pode chamar de o “outro lado” do genocídio através dos vômitos racistas no Congresso Nacional, das cenas deploráveis de um leilão da morte – que reuniu Kátia Abreu, ministra da Agricultura, e ruralistas – e da fala mansa dos matadores.
Afinal, o genocídio é um ato em que um grupo tenta exterminar outro, acabar com a existência de um povo. Neste caso, o lado genocida, materializado pelas balas dos pistoleiros e dos grupos de extermínio e empresas de segurança, é composto por fazendeiros, ruralistas, e também pela omissão e ação do Estado. A culpa histórica do Estado pelos eventos que levam ao martírio guarani é apresentada com precisão histórica e farta documentação.
Martírio acompanha a trajetória do drama e da violência colonial do capitalismo que atinge os Guarani, desde sua perspectiva histórica nos séculos anteriores, com a Guerra do Paraguai, até o violentíssimo avanço das últimas décadas, marcadas pela crueldade do racismo moderno e a desumanização científica e midiática produzida contra os indígenas.
Antes, a “guerra justa” que era aplicada para a escravização dos índios, agora é justificada pela teologia do progresso, do desenvolvimento, e em louvor à pata do boi e ao sacro grão da soja, à materialização da despossessão produzida pelo capitalismo e pelo colonialismo.
O filme percorre o caminho tortuoso entre o Mato Grosso do Sul, na realidade da fronteira, ao centro do poder, em Brasília — e poderia passar também pelos grandes portos consumidores de soja na Holanda, na China, nos Estados Unidos, ou do biodiesel que abastece os postos de gasolina e o bolso de ricas famílias em São Paulo.
Pela câmera de Carelli, que trabalha em conjunto com Ernesto de Carvalho, acompanhamos o pensamento Guarani e Kaiowa, a sofisticada compreensão de mundo que desenvolvem e o deplorável discurso da intolerância que justifica a acumulação de capital e de terra sobre o sangue indígena. A hipocrisia da falsa democracia racial é desnudada pelas contradições da formação do Estado-Nação que é um verdadeiro “Estado de Exceção”.
Carelli é um ícone da luta indígena e, com Martírio, nos mostra a possibilidade de uma pessoa branca – homem -, em um posicionamento social de colonizador, inverter a trajetória construída pela sociedade, mudar de lado para engajar-se em um contra-movimento descolonial e lutar pela autonomia e liberdade dos povos indígenas. Batalhar por justiça, se indignar e provocar para que outros se indignem frente aos absurdos, à covardia e à violência cruel.
Pessoalmente, sou um grande admirador de Vincent Carelli e é por causa de filmes como Martírio que tantas outras pessoas – assim como eu – o tratam como alguém absolutamente essencial para se pensar o Brasil que vivemos, para se indignar e lutar.
Antes, a “guerra justa” que era aplicada para a escravização dos índios, agora é justificada pela teologia do progresso, do desenvolvimento, e em louvor à pata do boi e ao sacro grão da soja, à materialização da despossessão produzida pelo capitalismo e pelo colonialismo.
O filme percorre o caminho tortuoso entre o Mato Grosso do Sul, na realidade da fronteira, ao centro do poder, em Brasília — e poderia passar também pelos grandes portos consumidores de soja na Holanda, na China, nos Estados Unidos, ou do biodiesel que abastece os postos de gasolina e o bolso de ricas famílias em São Paulo.
Pela câmera de Carelli, que trabalha em conjunto com Ernesto de Carvalho, acompanhamos o pensamento Guarani e Kaiowa, a sofisticada compreensão de mundo que desenvolvem e o deplorável discurso da intolerância que justifica a acumulação de capital e de terra sobre o sangue indígena. A hipocrisia da falsa democracia racial é desnudada pelas contradições da formação do Estado-Nação que é um verdadeiro “Estado de Exceção”.
Carelli é um ícone da luta indígena e, com Martírio, nos mostra a possibilidade de uma pessoa branca – homem -, em um posicionamento social de colonizador, inverter a trajetória construída pela sociedade, mudar de lado para engajar-se em um contra-movimento descolonial e lutar pela autonomia e liberdade dos povos indígenas. Batalhar por justiça, se indignar e provocar para que outros se indignem frente aos absurdos, à covardia e à violência cruel.
Pessoalmente, sou um grande admirador de Vincent Carelli e é por causa de filmes como Martírio que tantas outras pessoas – assim como eu – o tratam como alguém absolutamente essencial para se pensar o Brasil que vivemos, para se indignar e lutar.
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Este artigo foi publicado originalmente no site da revista Carta Capital, em 22/9/2016
Imagens: reproduções do documentário
Este artigo foi publicado originalmente no site da revista Carta Capital, em 22/9/2016
Imagens: reproduções do documentário
Fonte: Conexaoplaneta.
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