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sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O povo por trás da democracia


Vivemos em um sistema político democrático e temos como base que a democracia é feita pelo povo e na democracia atual o povo tem o “poder” de decidir sua representatividade no meio político. Esse texto pretende mostrar quem seria esse povo ao qual o conceito de democracia se refere e se existe democracia para os invisíveis na sociedade. Vem para mostrar se a democracia é para todos, e quem está por trás da democracia e suas tomadas de decisões como povo.

A base para responder a esses questionamentos virá do paralelo entre o livro “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus, mulher negra moradora de uma favela que se expandia na beira do rio Tietê no bairro do Canindé em São Paulo, que mostra a visão de dentro da favela, a esperança na democracia que muitas vezes se esgota, a revolta com o sistema político que não os representa, não os contempla, e o livro “A Democracia” de Renato Janine Ribeiro um professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo, que aborda a ideia de democracia, seu conceito, e quem seria o povo que elucida seu conceito e se ainda existe poder, já que democracia significa poder do povo. 

“A democracia” – Renato Janine e a Democracia Grega

Temos que democracia vem do grego (demos ou povo) e (kratos ou poder) que significa “democracia do povo”, o povo escolhe o grupo ou representante e também controla os passos que estão sendo tomados. E povos que não viviam sobre um regime democrático não eram livres aos olhos dos gregos. Nesse modelo (para muitos, ideal) de democracia grega – o de Atenas- vemos que somente alguns grupos participavam das tomadas de decisões que eram realizadas na praça, onde os grupos que não faziam parte e não podiam contribuir nas decisões políticas eram os escravos, mulheres, estrangeiros e menores de idade (esse ultimo ainda se mantém nos dias de hoje), mostrando que somente homens, ricos, e letrados podiam participar.

Renato em sua obra “A democracia” mostra que não temos como seguir o exemplo de Atenas, pois os gregos tinham tempo para se dedicar á tomada de decisões, priorizavam o ócio, e atualmente não temos esse deleite. Sem contar que direitos foram introduzidos na sociedade havendo novos subgrupos inseridos nas tomadas de decisões, mas não diretamente. Um ponto em que ele diferencia a democracia antiga com a moderna é que hoje quem comanda a política é a Economia, o que antes não era assim.

Segundo Renato Janine em seu livro, para ele, democracia é o que o que nos faz respeitar o bem comum, o que nos faz construir uma sociedade da qual esperamos nosso bem, pois num sistema democrático esperamos ter e ser mais. Renato vai mais longe dizendo que democracia é o regime da gente comum, de pessoas simples e anônimas.

Democracia Grega e Carolina Maria de Jesus em “Quarto de Despejo”

Pegando o modelo de Atenas temos que somente alguns grupos participavam da tomada de decisões na democracia vigente, o poder é do povo, porém é a sociedade alta quem decide quem é o povo por trás das decisões. E atrelando isso ao Livro de Carolina Maria de Jesus “Quarto de Despejo” temos que isso também ocorria na época em que ela vivia (1955-1960) onde ela dizia que a democracia é limitada a certos grupos, onde moradores de favelas, pessoas que passam fome, que não tem acesso à educação, ao emprego, que moram às margens, em sua maioria negra e que estão habituados à maldade humana, não tem acesso a essa participação direta de democracia, que por mais que façam parte dos números que mostram os eleitores, não são contemplados pelo regime democrático, não sendo perfil de povo que participa da tomada de decisões, pois são deixados de lado, marginalizados, não tendo sua voz escutada, não tendo suas necessidades supridas pelo regime que deveria representá-los.

Ou seja, tanto em Atenas quanto em 1955 ou em 2015, pobres, negros, e mulheres sempre estão à margem da representatividade política, sempre tem seus direitos negados, sempre são silenciados, distanciando-os de uma participação intensa e necessária na tomada de decisões que irão afetá-los. Isso nos mostra que mesmo com os avanços a sociedade ainda continua desigual, e quem sempre esteve no centro das atenções, no centro das decisões continuou no centro, e quem não faz parte desse grupo ficou às margens, recebendo somente “migalhas”, e que demoraram muito a serem conquistadas.

Outra perspectiva é que o fato de somente uma parcela da população poder participar das tomadas de decisões o restante acaba ficando à mercê das decisões dessa parcela, o que provém de um sistema desigual visto até mesmo no modelo Ateniense, onde os que participavam tinham tempo e acesso á informações, sendo que os demais não, e isso gera manipulação desse grupo com informação para os que não possuem, rola falsas promessas, mentiras para conquistar a simpatia de todos e isso é visto no livro de Carolina onde ela afirma que um político diz em seus discursos que está do lado do povo, que pretende melhorar as condições de vida, e pede voto, promete congelar os preços ele já está eleito, já tem voto garantido nas urnas, mas depois se divorciam do povo, olhando para ele com os olhos semicerrados, com orgulho, que fere o povo, mostrando as falsas promessas que, em meio ao desespero, as pessoas acreditam e acabam dando seu voto de confiança, mas que depois enxergam a verdadeira natureza do candidato que nunca mais volta à favela.

Renato Janine e Carolina Maria de Jesus – Democracia teoria x prática

Renato relata em seu livro que a política de hoje é tão falsa, tão distante das pessoas que elas perdem o empenho por ela, ou seja, que a política de hoje é tão suja, que muitos não acreditam mais que ela seja eficaz. E Carolina relata em seu livro que por muitas vezes perdeu a fé na democracia, dizendo que a democracia está perdendo seus adeptos e no Brasil (no momento em que ela vivia) estava enfraquecendo e tudo que é fraco um dia morre. E diz mais, diz que o custo de vida faz com que o operário perca a simpatia pela democracia, pois como disse o senhor Jacó, o sapateiro citado em seu livro, era melhor que viesse o comunismo, por que o que fabrica não da para suprir as despesas, o que mostra o desespero, pois antes quem aprovava o comunismo eram os operários, mas agora até os patrões.

Não se pode falar de Democracia sem tocar no assunto de direitos sociais, e no Brasil esses são os mais fracos, como pode ser visto no livro do Renato, e infelizmente nem todos possuem suas necessidades básicas atendidas, e as falsas promessas feitas durante as eleições recaem sobre essas necessidades. E para Carolina quem dirige é quem tem capacidade, quem tem dó e amizade ao povo, porém quem governa o país é quem tem dinheiro e quem não conhece a fome, as aflições do pobre e se a maioria se revoltar o que iria fazer a minoria? Carolina diz que está ao lado do pobre que é braço desnutrido.

Tudo isso mostra que os pobres são preteridos, que os pobres não recebem nenhum tipo de políticas públicas, nem de segurança, nem alimentícios, nem de saúde e muito menos de moradia, e mostra o temor que muitos que estão privilegiados na sociedade têm dos pobres se revoltarem e revindicarem aquilo que eles têm direito, e que não ter suas necessidades básicas leva á criminalidade, leva á conflitos sociais, o que revela a falha do Estado e seu regime democrático em contemplar o povo e lhes garantir seus direitos sociais e igualdade.

Temos que para Renato, a democracia é o governo do invisível, dos simples, e através da visão de Carolina consegue-se enxergar que na prática não é assim que a democracia funciona. Fazendo um paralelo entre democracia grega, a visão passada de democracia por Renato e olhando a história de vida de Carolina, encontramos que nossa democracia atual não está muito longe da democracia grega, porém com alguns grupos que tiveram direitos á voto, porém continuam sem representatividade, continuam sendo manipulados pela mídia por falta de informação, continuam sendo marginalizados e as decisões tomadas pela democracia não chegam até eles ou são totalmente deturpadas do que antes tinha sido prometido, e o que nos mostra que a vida de Carolina serve de contraexemplo á ideia de democracia posta por Renato, pois não é uma democracia feita pelos simples, pelos invisíveis, anônimos.

A democracia é muito mais do que voto, é ter o retorno dos seus representantes, é ter seus direitos garantidos e realizados, mas que isso não chega até as margens. Renato acredita que não tem como se ver democracia sem pensar nos pobres, e seus desejos de ter e ser mais do que são, por isso a democracia não pode ser apenas uma forma constituinte e jurídica, ela precisa pensar no componente social, embora tenha separado a política do social, e talvez seja por isso que temos esse cenário que se encontra Carolina.

Então chegamos á conclusão que o povo por trás da democracia não somos nós, pobres, mulheres, negros, e sim, os ricos, burguês, e em maioria, homens. Que muitos de nós continuam a mercê das tomadas de decisões deles, pois são eles quem estão no poder, que muitos de nós não tem suas necessidades básicas conquistadas, devido á esse subgrupo como Renato nomeia a população atual que está dividida em subgrupos que estão interligados entre si, onde um subjulga o outro e o crescimento de um depende do decrescimento do outro. Na democracia é o que faz respeitar o bem comum, e construir uma sociedade da qual visamos o bem, e esperamos ser mais e ter mais, segundo Renato, porém como fazer isso se na prática se a maioria de nós está em desvantagens?

Por fim, deixo essa reflexão de Carolina, onde ela acredita que de seu subgrupo poderiam sair às transformações necessárias na sociedade, porém, teriam que ser à força, ela até parafraseia que Juscelino Kubitschek é um sabiá que vive em uma gaiola de ouro, mas que é pra ter cuidado com os gatos por que eles tem fome e os gatos são os favelados. Ou seja, a mudança terá que sair de nós, as transformações virão de nós, e precisaremos estar juntos e fortes para conquistar espaço e tudo àquilo que nos foi negado desde o princípio.

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Imagem destacada: Geso Silva

Scarlett Rodrigues da Cunha, estudante de Políticas Públicas e Relações Internacionais na Ufabc. Mulher negra, militante e feminista. Uma das administradoras do Coletivo Chute, e do grupo Deusas Negras e integrante do Coletivo Negro Vozes (ufabc).

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