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quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Conversando com Lélia Gonzalez


Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 2015

Querida Lélia,

Estou falando com você no Centro Cultural Branco do Brasil, do Rio de Janeiro. É o Tributo em sua homenagem e aproveito para agradecer e parabenizar à REDEH – Rede de Desenvolvimento Humano, na pessoa de Schuma Schumaher, que fez o convite para eu dar esse depoimento.

Essa carta é o meu depoimento!

Aliás, as cartas foram abolidas de nossa cultura. Isso mesmo, hoje nossas correspondências são todas na Internet. Lembra-se do Boletim do N’ZINGA? Quando enviávamos pelos Correios? Hoje tudo está no portal, no zap, no link, site … modernidade!

Recentemente assisti a uma palestra de Ângela Davis, que dizia não ter a dimensão do que, aquela ação dos Panteras Negras, representava na época que militava. Hoje, falo o mesmo em relação à nossa atuação no N’ZINGA e à minha convivência com você, na Ladeira dos Tabajaras e em Santa Tereza.

Então me lembrei daquele evento organizado pela Universidade Cândido Mendes, em 1983: Encontro Brasil – África, quando nos depararmos com as fotos sensuais de mulheres negras sambistas, de um jantar de confraternização entre os participantes na noite anterior. Ficamos IRADAS, então algumas mulheres negras que participavam redigiram uma MOÇÃO DE REPÚDIO. O desafio era saber quem leria aquele documento, que expressava nossa indignação. Você aceitou o desafio na hora, já que estaria na mesa.

Foi lindo! Nos sentimos representadas por você. Vimos que nossas falas saiam de sua boca durante o evento.

Você era assim, aliada das mulheres independente do lugar que estivesse ocupando. À época, por ter 23 anos, eu não tinha a dimensão do grande papel que você já representava. Hoje, você precisa saber, não há um Centro Acadêmico, não existe uma militante que não faça referência à sua pessoa e, às suas obras. Virou nossa griot do combate ao racismo e a situação da mulher negra em nosso país e no mundo.

E as coisas aqui não vão tão bem assim, temos tido muito trabalho e muito sofrimento diante de tanta intolerância e racismo. Várias bananas foram jogadas nos gramados de futebol, assassinatos de mulheres negras, estupros, violência obstetrícia, genocídio de jovens negros, potencialização dos xingamentos de “Macaco”, “Crioulo”, “Neguinha”, prisões injustificadas …

E o pior é que imaginávamos o fim do racismo, no entanto a sensação é que estamos “enxugando gelo”… Todos os dias um novo ataque racista acontece.

E isso cansa. E muito!

Poderia citar outros e inúmeros episódios de racismo, mas isso a entristeceria demais e você sempre foi otimista e acreditava nas mudanças das relações raciais no Brasil. Você esperava, como a gente ainda espera e luta, por uma Nação que trabalhasse unida, para acabar com essa prática que tem excluído mulheres e homens negros do acesso aos bens culturais, econômicos, sociais e políticos.

E como você era uma acadêmica política, então teria uma grande decepção em ver os partidos políticos – de esquerda, centro e direita – tentar enrolar nosso povo.

Isso mesmo!

Após anos de reivindicações por políticas específicas, foram criados Organismos de Promoção da Igualdade Racial, que não promovem quase nada, salvo raríssimas exceções. A maioria sem poder, sem dinheiro e sem credibilidade. Usaram – e usam – nossas bandeiras. Se apropriando com fins eleitoreiros e eleitorais, só para ganharem votos.

Tentam calar nossa voz e encarcerar nossa ação!

Mas continuamos resistindo!

Avançamos em alguns pontos: como a Lei das Cotas, que hoje possibilita a inserção de negros nas Universidades e Institutos Federais. E isso me fez lembrar os momentos que me chamava de “tinta fraca”. Você nem imagina, como tem “tinta fraquíssima” e, até “sem tinta” burlando essa lei para obter o benefício.

Pasme, o Brasil ficou muito mais negro, que engloba até os brancos em determinados momentos. Só falta falar “pretuguês”!

Avançamos ainda, na Lei que torna obrigatório o ensino da Cultura Afro-brasileira e Africana nas escolas, mas você sabe como é, essa coisa de lei no Brasil: poucos cumprem. Por isso a luta continua!

Você iria adorar, pois estamos organizando a Marcha das Mulheres Negras – 2015: Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver, que acontecerá em Brasília no dia 18 de novembro de 2015, para reivindicar mais e lutar mais, por políticas públicas sérias e comprometidas com as mulheres negras do Brasil. Negras de todo o país estão se movimentando, discutindo, formando, capacitando e… incomodando bastante!

Estaremos reafirmando nossas bandeiras, nossas esperanças, nossas lutas e você, certamente, estaria conosco nessa!

Vou terminar, pois o tempo é curto, sabe como é, né? Três minutos!

Fica meu abraço, minha admiração e meu lamento por sua ausência aqui, mas eu sei que sempre estará caminhando com a gente.

E fico imaginando você aí, dizendo: “Vamos lá, negadinha!”.

Beijos e saudades! 

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Rosalia de Oliveira Lemos - Doutoranda em Política Social/UFF – Professora do IFRJ - Instituto Federal do Rio de Janeiro - Fundadora da É'LÉÉKÒ - do Disque Racismo/RJ – da CODIM/Nit - Feminista Negra.

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