por Luma Oliveira,
Para começo de conversa, quantas escritoras negras vocês conhecem? Quantas vocês já estudaram ao longo da formação escolar? Quantos livros de poetisas negras vocês encontram por aí nas livrarias? Pois é, tenho certeza que a grande maioria das pessoas que começaram a ler este texto deve ter dito um “NÃO” para a maioria das questões acima, sobretudo à segunda. Desde muito cedo sempre fiquei me questionando o porquê de estudar uma infinidade de autores, majoritariamente brancos e homens.
Quando estudava alguma autora e ficava feliz da vida, era uma por semestre, e nenhuma delas era negra. Ficava indignada ao pegar os livros didáticos e observar que em nenhum momento a literatura de autoria negra fazia parte dali, e se fazia, era só um pequeno resumo, sobre a obra de um homem (Cruz e Sousa, um Machado de Assis que há algum tempo o deixaram branco num comercial de TV), mas jamais aprendi em âmbito escolar que havia escritoras negras.
É muito importante que se trave uma luta para a visibilidade da literatura negra e os livros didáticos não devem ficar de fora, pois na escola se formam ideologias, e o trabalho, sobretudo da literatura que trabalhe questões raciais, este é mais um passo para que a discriminação racial não continue fincando suas raízes no processo educacional e social. Ao contrario do que muita gente (infelizmente) ainda pensa, a poesia possui papel fundamental para transformações sociais, do meu ponto de vista, político e revolucionário.
Hoje diversos eventos de trabalho com a poesia, principalmente na periferia são atividades constantes, com saraus, teatro e tenham ganhado tanto espaço, formando leitores e autores engajados em discutir raça, classe e gênero em sua construção poética. A cada dia que passa a poesia se faz mais presente nas lutas contra as opressões.
A escravidão traz marcas até hoje, cicatrizes profundas carregadas pelos negros, sobretudo as mulheres negras, oprimidas tanto pelo seu gênero, quanto por sua cor. A todo custo nos é ensinado a negar a nossa identidade, fazendo assim com que desprezemos a nossa origem, querendo encaixar nos padrões de beleza europeus, com a febre por cabelos lisos; outro retrato fiel de herança na escravidão é o mercado de trabalho para a mulher negra; no que se refere à educação, ainda somos minoria no ensino público superior.
Permanecemos construídas como seres que servem para enfeitar cartão postal e ser atração pra turista; representam-nos nas novelas, filmes e comerciais como meros produtos nacionais; o machismo inventa desculpas para camuflar o machismo, falando das formas corporais da mulher negra, criando estereótipos para que nos esqueçamos da história de opressão; somos as mais atingidas pela miséria; aproveitando as dores causadas pela opressão, tentaram apagar a nossa identidade e fazer com que a resistência fosse esquecida.
Algumas das minhas citações acima são opressões enfrentadas comumente pelo gênero feminino, todavia é necessário fazer um recorte na discussão de gênero para discutir a opressão à mulher negra (oprimida duas vezes). Do meu ponto de vista, não podemos discutir as opressões como se as questões sociais fossem tudo uma coisa só, deve ser levada em consideração os agravantes de opressão para luta a discussão, como raça, gênero, classe social e orientação sexual.
Elisa Lucinda, escritora brasileira. Imagem: reprodução.
A divulgação da poesia negra em nosso país começou a ser feita há pouquíssimo tempo (meados da década de 70), e a cada dia nossa luta também no campo da literatura ganha força e através da poesia, vamos executando nosso grito por igualdade, discutindo as mazelas sociais, os resquícios de uma sociedade escravocrata, assumimos a nossa identidade, escrevendo a nossa história, direitos que por muitos anos foram negados. Os estudos acerca da poesia de autoria negra e feminina ainda são poucos, sinto na pele a dificuldade em levar esta discussão ao meio acadêmico que é tradicional, trabalhando a poesia de autores brancos e homens, um meio muitas vezes fechado para discutir uma história que vem sendo escrita há tempos.
A representação do negro na literatura e nos livros didáticos é produto da opressão racial que se arrasta na sociedade, a mulher negra na literatura historicamente foi construída trabalhada em estereótipos, e escrita/descrita por outras pessoas, nunca por elas mesmas, quando o assunto é poesia são poucos os registros de poesias sobre a mulher negra e escritas por mulheres negras, até mesmo nos dias de hoje. Isso não significa que não tenhamos poesia de autoria feminina e negra que discuta gênero e etnicidade, significa que a falta de divulgação e o meio literário preso às tradições, não abre espaço para o novo, não abriu espaço, mesmo com tantos anos de contribuições negras literárias, para que possamos expor a nossa história e fazer parte da literatura nacional.
O que faltava para o mundo da poesia negra era visibilidade, nossa voz através dos versos, era preciso discutir raça e gênero, assim reafirmando nossa etnia, discutindo as opressões contra as quais lutamos todos os dias. Na trajetória em busca de atrás das obras de escritoras negras, acabei conhecendo um pouco da obra de Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, Carolina Maria de Jesus, Esmeralda Ribeiro, Cristiane Sobral, entre outras. Com sede de poesia, com sede de lutar através dos versos, eis que me apaixonei pela obra de Cristiane Sobral e Elisa Lucinda, que possuem vários pontos comuns, tratam-se de duas escritoras contemporâneas que expressam na poesia a voz da mulher negra, a ancestralidade, lutam contra o racismo e discutem gênero.
O meu primeiro contato foi com Elisa Lucinda, pela poesia além da forma, em cada palavra um impulso para a luta, um grito e exposição de tudo que a mulher negra herdou da escravidão, um quadro social muito além dos versos, o sentimento de luta começou a sair pelos meus olhos quando li:
“Em mim tu esqueces tarefas, favelas, senzalas, nada mais vai doer.
Sinto cheiro docê, meu maculelê, vem nega, me ama, me colore
Vem ser meu folclore, vem ser minha tese sobre nego malê.
Vem, nega, vem me arrasar, depois te levo pra gente sambar.”
Imaginem: Ouvi tudo isso sem calma e sem dor.
Já preso esse ex-feitor, eu disse: “Seu delegado…”
E o delegado piscou.
Falei com o juiz, o juiz se insinuou e decretou pequena pena
com cela especial por ser esse branco intelectual…
Eu disse: “Seu Juiz, não adianta! Opressão, Barbaridade, Genocídio
nada disso se cura trepando com uma escura!”- Mulata Exportação (Da série “Brasil, meu espartilho”)
A autora expõe a visão machista e a construção social feita em torno da imagem da mulher negra, herança da escravidão e reforçada na literatura, novelas e filmes, com base na idéia da mulher negra como objeto sexual. O contato com Cristiane Sobral se deu por meio de um evento poético, onde tive um contato maior com a literatura marginal (outro assunto do meu interesse) e em meio à noite poética, eis que surgem algumas mulheres que começam a declamar uma poesia forte, a literatura feminina afro-brasileira, um protesto, o eu-lírico gritando: “Não Vou Mais Lavar os Pratos!”, eis um trecho:
“Não vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito. Comecei a ler
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos
A estética dos traços, a ética
A estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
Mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante” Sobral. Cristiane. Não vou mais lavar os pratos
A luta negra e feminista está presente e mais viva do que nunca na poesia. Através dos versos reafirmamos a nossa identidade e utilizamos à escrita como meio de discutir e lutar contra as opressões da sociedade racista, classista e patriarcal. Temos um caminho muito longo a percorrer por uma sociedade mais igual, onde a mulher negra possa escrever a sua própria história, prosa, poesia e liberdade. Estamos cansadas dos retratos de escravas, de escreverem por nós as nossas angústias, nas nossas lutas e nossas vozes parecendo ser através das letras que não veio das mãos de quem de fato enfrenta todos os dias o julgamento, o tapa da desigualdade, o deboche pela sua cor, o seu cabelo querendo ser camuflado, as cicatrizes da privação de direitos e liberdade, o grito da ancestralidade e luta e orgulho de ser mulher, negra, guerreira e poeta.
Luma Oliveira escreve no Entre Luma e Frida sobre feminismo, política, militância na periferia, educação popular, poesia, sexo, literatura e revolução.
Fonte: BlogueirasNegas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário