Por Audre Lorde (tradução de Renata),
Nota da tradutora
Este texto foi escrito em 1981, faz parte do livro Sister Outsider e pode ser lido na íntegra, em inglês, aqui (pdf). A tradução foi dividida em três partes e amanhã e quarta será publicada a continuação. Alguns trechos foram cortados, mesmo com os questionamentos bem específicos à identidade da Audre (cis, negra, lésbica e mãe, por exemplo), por serem particulares demais a determinadas ocasiões.
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Racismo. A crença na superioridade inerente de uma raça sobre todas as outras e, deste modo, o direito de dominância — manifestado ou subentendido.
Mulheres respondendo ao racismo. Minha resposta ao racismo é raiva. Eu vivi com raiva, a ignorando, me alimentado dela, aprendendo a usá-la antes de ela destruir minhas visões, durante a maior parte da minha vida. Uma vez respondi em silêncio, com medo do peso. Meu medo da raiva me ensinou nada. Seu medo da raiva irá te ensinar nada, também.
Mulheres respondendo ao racismo significa mulheres respondendo à raiva; a raiva da exclusão do privilégio inquestionável, de distorções raciais, do silêncio, maltrato, estereótipo, defensividade, errar nomes, traição e cooptação.
Minha raiva é uma resposta a atitudes racistas e a ações e presunções que surgem dessas atitudes. Se a forma como você lida com outras mulheres reflete essas atitudes, então minha raiva e seus medos que a acompanham são focos que podem ser usados para o crescimento do mesmo modo que eu usei ao aprender a expressar raiva para o meu crescimento. Mas para cirurgia corretiva, não culpa. Culpa e defensividade são tijolos num muro contra o qual todxs nós nos debatemos; eles não servem aos nossos futuros.
Porque não quero que esta se torne uma discussão teórica, darei alguns exemplos de intercâmbios entre mulheres que ilustram estes pontos. Por questão de tempo, vou encurtá-los. Quero que vocês saibam que houve muitos outros.
Por exemplo:
Eu falo a partir de uma raiva direta e particular numa conferência acadêmica e uma mulher branca diz: “Diga-me como você se sente, mas não diga muito duramente ou não posso te ouvir”. Mas é minha conduta que a impede de ouvir ou a ameaça de uma mensagem que sua vida pode mudar?
O Programa de Estudos sobre Mulheres de uma universidade do sul [dos Estados Unidos] convida uma mulher negra a ler em seguida a um fórum de uma semana sobre mulheres negras e brancas. “O que esta semana deu a vocês?”, pergunto. A mulher branca mais franca diz: “Acho que recebi muito. Eu sinto que mulheres negras realmente me entendem bem melhor agora; elas têm uma ideia melhor de onde partem minhas ideias”. Como se entendê-la fosse o centro do problema racista.
Depois de quinze anos de um movimento de mulheres que professa tratar as preocupações de vida e possíveis futuros para todas as mulheres, ainda ouço, dentro e fora do campus: “Como podemos tratar as questões de racismo? Nenhuma mulher negra compareceu”. Ou do outro lado dessa declaração: “Não temos alguém em nosso departamento equipadx para ensinar sobre o trabalho delas”. Em outras palavras, racismo é um problema das mulheres negras, um problema de mulheres de diferentes raças e etnias, e apenas nós podemos discuti-lo.
Depois de eu ler minha obra entitulada “Poemas para Mulheres em Fúria”, uma mulher branca me pergunta: “Você vai fazer algo com a forma como podemos lidar diretamente com nossa raiva? Eu sinto que é tão importante”. Eu pergunto: “Como você usa sua raiva?”. E então tenho de desviar de seu olhar vazio antes que ela possa me convidar a participar de sua própria aniquilação. Eu não existo para sentir a raiva dela por ela.[…]
Eu levo minha filha de dois anos num carrinho de compras pelo supermercado em Eastchester [Nova York] em 1967 e uma garotinha branca passando no carrinho de sua mãe grita, empolgada: “Olha, mamãe, uma empregada bebê!”. E a sua mãe te cala, mas ela não te corrige. E então quinze anos depois, numa conferência sobre racismo, você ainda pode considerar essa história humorística. Mas eu ouço que sua risada é cheia de terror e doença.
Uma branca acadêmica dá as boas-vindas à aparição de uma arrecadação feita por mulheres de diferentes raças e etnias, menos negras. “Isso me permite lidar com racismo sem lidar com a severidade de mulheres negras”, ela me diz.
Numa reunião cultural internacional de mulheres, uma poeta branca estadounidense bem conhecida interrompe a leitura do trabalho de uma mulher negra para ler seu próprio poema, e depois sai correndo para um “painel importante”.
Mulheres respondendo ao racismo significa mulheres respondendo à raiva; a raiva da exclusão do privilégio inquestionável, de distorções raciais, do silêncio, maltrato, estereótipo, defensividade, errar nomes, traição e cooptação.
Se mulheres na academia querem de verdade um diálogo sobre racismo, vai requerer reconhecer as necesssidades e os contextos vivos de outras mulheres. Quando uma mulher acadêmica diz “Não posso arcar”, ela pode querer dizer que está fazendo a escolha sobre como gastar seu dinheiro disponível. Mas quando uma mulher que recebe auxílio do governo diz “Não posso arcar”, ela quer dizer que sobrevive com a quantia de dinheiro que mal subexistia em 1972 e ela com frequência não tem o suficiente para comer. Ainda assim, a Associação Nacional de Estudos sobre Mulheres aqui em 1981 faz uma conferência na qual se compromete a responder ao racismo, embora recuse desistir da taxa de inscrição para mulheres pobres e mulheres de diferentes raças e etnias […] participarem nesta conferência. Este é meramente outro caso da academia discutindo a vida dentro de circuitos fechados da academia?
Para as mulheres brancas presentes que rconhecem estas atitudes como familiares, mas, acima de tudo, para todas as minhas irmãs de cor que vivem e sobrevivem a milhares desses encontros — para as minhas irmãs de cor que, como eu, ainda tremem debaixo de suas armaduras, ou que às vezes questionam a expressão de nossa raiva como inútil e perturbadora (as duas acusações mais populares) — eu quero falar sobre raiva, minha raiva, e sobre o que aprendi de minhas viagens através de seus domínios.
Audre Lorde nasceu 1934, em Nova York, e foi poeta, ensaísta, feminista intersecional e ativista. Ela costumava se definir como ”negra, lésbica, mãe, guerreira, poeta”. Morreu em novembro de 1992.
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Os exemplos que Audre deu ainda ocorrem hoje em dia? Mesmo que não sejam no meio acadêmico. Como mulheres negras são tratadas no feminismo quando querem dizer algo, quando querem falar sobre racismo e de suas experiências?
Fonte: Questões Plurais.
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