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terça-feira, 14 de janeiro de 2020

“Eu não quero ser a sua amiga”: A Precariedade do Afeto na Vida de Mulheres Pretas

A violência e estereótipos que minam nossa afetividade.
 
Ilustração por: Ojo Agi Shop

“Tenho a impressão de que sou um objeto fora do uso, digno de estar num quarto de despejo. ”
– Carolina Maria de Jesus

Amor. Respeito. Afeto. Companheirismo.

Tais palavras lhe soam familiar? Obviamente, sim. E se eu lhe contasse que, apesar da extrema familiaridade, muitas mulheres jamais conheceram e vivenciaram seu real significado?

Infelizmente, não trata-se de um eufemismo, mas sim, uma afirmação real e confirmada através de dados estatísticos:


“No último Censo, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, dados sobre a mulher preta brasileira chamaram a atenção. O levantamento apontava que, à época, mais da metade delas — 52,52% — não vivia em união, independentemente do estado civil. ”

– Fonte: Revista Fórum

“As mulheres pretas chefes de famílias com até um salário mínimo de

rendimento são de 60%, revelando uma escolaridade mais baixa. Já as famílias

chefiadas por mulheres que recebem três salários ou mais, a presença das

mulheres pretas reduz para 29%. ”
– Fonte: Mulher Negra, Dados Estatísticos

“Dados da Central de Atendimento à Mulher relativos ao ano de 2013 apontam que 59,4% dos registros de violência doméstica no serviço referem-se a mulheres pretas. ”
– Fonte: Agência Patrícia Galvão (Violência e Racismo)

“O Dossiê Mulher 2015, do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, aponta que 56,8% das vítimas dos estupros registrados no Estado em 2014, eram pretas. E 62,2% dos homicídios de mulheres, vitimaram pretas (19,3%) e pardas (42,9%).”

– Fonte: Agência Patrícia Galvão (Violência e Racismo)

Torno a fazer outro questionamento:

Há algo em comum entre as mulheres catalogadas nas estatísticas, afora as condições inferiores as quais são submetidas?

Praticamente todas são: pretas.
O princípio da solidão

Desde os primórdios da sociedade brasileira, mulheres pretas têm constituído o elo mais fraco da corrente social. Trazidas da África para serem escravizadas; perderam direitos, família, amigos e boa parte de sua expressão cultural, religiosa e social. Tais acontecimentos não ocorreram somente em Brasil.

As escravizadas, em geral trabalhavam arduamente em lavouras e plantações, tal qual os homens. Entretanto, também serviam aos seus alvos senhores nas Casas Grandes. Havia divisão de trabalhos: algumas serviam aos cuidados domésticos, outras, aos cuidados das crianças e todas, sexualmente vinculadas, estavam sujeitas aos caprichos dos senhores e até mesmo, de outros escravizados. Creio eu, que neste ambiente caótico, torturante e repressivo, não havia o mínimo espaço para amor ou bons sentimentos. O menor deslize era o suficiente para suscitar castigos brutais. Afora afazeres domésticos e serviços como “amas de leite”, as mulheres pretas também eram o útero da servidão. Comumente estupradas, pariam os futuros trabalhadores de lavouras aos montes. Isso quando não provocavam abortos, para livrar suas futuras crianças de uma existência completamente miserável. As mais “bonitas” eram forçadas a tornarem-se concubinas de seus senhores, muitas vezes, parindo filhos mestiços que seriam renegados por seus “pais”.
 

Um dos pilares da violência sofrida por mulheres pretas em tal período, era o ódio que despertavam em suas senhoras. Eram intensamente punidas por motivos fúteis, baseados na frustração sentida pelas mesmas, ao saber que seus maridos preferiam as escravizadas em práticas sexuais, sem ao menos considerar o fato de que tratava-se de estupro. Não obstante, algumas serviam de acompanhantes para suas senhoras, o que não tornava-as imunes a maus tratos.

Mulheres pretas foram submetidas à uma existência de completa servidão física e mental ao patriarcado branco, durante 358 anos de nossa história. Certamente, haveria sequelas.
 
Os Dias Atuais

As consequências de tais abusos perduram em nossa sociedade até o tempo presente. Mulheres pretas ainda são o elo mais fraco da corrente social. Saímos das senzalas e migramos para as favelas. “A escravizada” torna-se “a pobre”, a experimentar mais uma vez hostilidade, crueldade e marginalidade. Pesquisas comprovam que no Brasil, a maior parcela de mães solteiras sustentando seus filhos com um salário mínimo, ou menos, é constituída por mulheres pretas. Somos aquelas que saem para trabalhar precocemente, muitas vezes, as que cresceram sem a presença masculina em suas casas. Não é preciso ir tão longe para deparar-se com tal realidade. Qual de nós não possui uma avó, tia, prima ou sobrinha de pele escura que, por alguma razão, sustenta ou sustentou os filhos sem a presença masculina em seu lar? E foram abandonadas por seus maridos, à própria sorte? Vivemos a precariedade do afeto, ainda em nossa infância e em nossos lares.

A opressão sofrida por mulheres pretas é estritamente maior, pois, além do machismo, somos oprimidas pelo racismo institucional instaurado na sociedade. Não afeta somente as oportunidades de ascensão social, mas também, nossa afetividade, constantemente. Remontando o período colonial, nossos corpos ainda são sinônimo de sexo fácil, animalidade e ausência de sentimentos. Somos cobiçadas por conta de nossas coxas, bundas voluptuosas, lábios carnudos e silhuetas. A carne fala mais alto do que nossa humanidade, nesta sociedade em que valemos praticamente: NADA.

Somos preteridas, pois, homens e mulheres aprendem desde a tenra infância a adorar a beleza eurocêntrica e detestar aquela que advém de origem africana. Os traços finos, a pele branca, cabelos lisos e olhos extremamente claros, são exaltados. Enquanto traços africanos tornam-se motivo de chacota, vergonha e humilhação. Nossos contornos são considerados indesejáveis, ao menos que estejam no corpo de uma mulher branca. O que constitui uma enorme contradição, afinal, apesar do desejo exacerbado sobre nossos corpos, há um ódio descomunal sobre nossas origens. Este ódio não cega somente brancos, mas também, os pretos que por questões socioculturais acabam por preferir relacionar-se com mulheres brancas, a fim de conseguir ascensão social e “embranquecer” suas famílias. Na maioria dos casos, muitos passam a vida sem jamais relacionar-se seriamente com uma mulher de mesma cor e jamais percebem.

Para este artigo, entrevistei algumas mulheres, explanando assim uma realidade material a qual todas nós estamos sujeitas. Esperei as mais variadas respostas, no entanto, surpreendi-me ao perceber que todas possuíam, praticamente, pontos que partiam do mesmo pressuposto:


“01 — Você já se sentiu rejeitada por ser uma mulher preta?
02 — Já sentiu que homens a buscavam para sexo, mas não para relacionamentos duradouros?
03 — Já se relacionou com homens pretos e/ou brancos?
04 — Quais diferenças notou entre ambos?
05 — Já se sentiu pressionada pela sociedade em relação a sua sexualidade? ”

Essas foram as respostas de algumas das moças entrevistadas:

“sim, a todo momento. Sempre fui a pessoa que servia pra ser amiga, enquanto as meninas brancas serviam pra ser namorada, mesmo não sendo parceiras.”

“Sim, eu era objetificada inclusive durante um relacionamento. Era a “puta”, enquanto ele se encantava pelo “charme e delicadeza” de outras mulheres brancas.”

“demorei a entrar em um relacionamento sério”

“era hipersexualizada por ambos, preterida por ambos, escondida por ambos, porém senti dos caras pretos a negação em se ver como pretos, onde automaticamente não assumiam sua cor, se embranquecendo a todo momento (nitidamente fruto do auto-ódio.)”

“homem branco é racista e cego pelo privilégio, homem preto é vítima do racismo e tenta se embranquecer o máximo por conta disso. inclusive já me relacionei com homem preto retinto que enxergava em mim uma oportunidade de clarear a família, isso claramente porque não conseguia uma branca então uma preta de pele clara é o que tinha.”
“Eu não quero ser a sua amiga”: O estereótipo da amiga preta

“Sempre fui a pessoa que servia pra ser amiga, enquanto as meninas brancas serviam pra ser namorada.”
– S. G. (Entrevistada)
Essa frase remete-nos a um dos estereótipos mais nocivos à afetividade de mulheres pretas. Como é de se notar, em diversos filmes, séries, animações e novelas com algum protagonismo feminino, este arquétipo sempre, ou quase sempre, faz-se presente: “a amiga preta”. Geralmente, trata-se de uma personagem que a todo momento fica à sombra da protagonista branca. Ela possui uma personalidade subdesenvolvida na trama, praticamente nenhuma autonomia, comportamento caricato, e geralmente acaba sozinha, enquanto a protagonista branca vive uma intensa história de amor.
 
Ritinha e sua amiga Marilda em “A Força do Querer”.
 
Charlotte, ( no centro), acompanhada de suas amigas Tai ( a esquerda) e Dionne ( a direita) para o filme: “Clueless”.

Na vida real, não é diferente.

A maioria das meninas pretas passam por tal situação em sua adolescência. Não importa o quão bonita, interessante, afetuosa ou inteligente você seja; nunca será páreo para aquela menina loira e branquinha pela qual todos os meninos pretos, brancos e não-brancos derretem os corações. Sentimos isso em nossa pele ainda nas primeiras paixões e esse estigma, infelizmente, acompanha-nos até o fim da vida. Tal situação transforma um período de descobertas essencial ao ser humano, em uma ferida aberta e visceral que, talvez, jamais feche-se. Sonhamos com um amor construído socialmente, que negam-nos a todo instante. Enquanto nossas amigas brancas ou de pele clara saem constantemente, namoram e são tratadas de maneira diferenciada pelos rapazes, somos preteridas e silenciadas.

Um exemplo real o qual podemos citar, é a atriz global Taís Araújo. Como sabemos, Taís é considerada uma mulher belíssima e nos dias atuais é extremamente aclamada por sua aparência. Porém, através de seus relatos ao site Gshow a respeito de sua relação com os demais durante a adolescência, percebemos que não trata-se do quão bonitas somos ou podemos ser, mas sim, da cor de nossas peles:
 
“Estudei a vida inteira em um lugar no qual a maioria das pessoas era branca. Só que eu era aquela que não namorava ninguém no colégio, nem no condomínio. Para dar meu primeiro beijo, tive que ir à Bahia. Eu até trabalhava como modelo, era considerada bonita, mas ninguém queria me namorar. Ou não tinha coragem. Sofria, né? ‘Eu gostava dos garotos, eles que não gostavam de mim’”
— Taís Araújo.

O preterimento intensifica-se quando vivemos em ambientes majoritariamente brancos. A todo momento, atitudes e posicionamentos teimam em recordar-nos de que estamos em um patamar o qual “não pertencemos” e jamais nos permitirão pertencer.

As moças de pele clara, “são para casar”, construir família e vivenciar relacionamentos. Nós, “somos para transar”, viver dissolutamente em prol do prazer masculino, para posteriormente ser descartadas e terminar nossas vidas criando filhos de homens que simplesmente abandonaram-nos. Muitas vezes, somos relegadas tão somente à amizade. Quando nos relacionamos socialmente com rapazes, veem-nos como boas amigas, mas, jamais cogitam a possibilidade de estarmos ali, como parceiras. Já outros, nos buscam, quase desesperadamente, para o sexo sem compromisso. Toda menina preta já ouviu algo como: “vocês são as mais quentes”, “vocês são mais gostosas”, “essa pele da cor do pecado me deixa louco”. Somos impossibilitadas de experimentar uma vida sexual e afetiva saudável. Na maioria das vezes, ou nos reprimimos, ou acabamos na cama de algum babaca.
 
Tradução: “Meu nome, com toda a certeza não é Maldita Vadia Preta.”. Imagem retirada da série: “she’s gotta have it”.
Considerações Finais

Essa sociedade doentia sexualiza-nos de maneira cruel, com destaque para as meninas que estão em situação de pobreza. Desde os 10 anos ou até menos, muitas eram e ainda são ensinadas a utilizar shorts minúsculos e agir de maneira provocante e permissiva. Nos doutrinam para apreciar tal tratamento, reproduzi-lo para outras meninas e o aceitarmos sem jamais questionar. Enquanto os homens, sempre foram ensinados que a cor de nossa pele é um passe livre para o abuso, estupro e pedofilia. Nunca para o amor. Independente de como você seja. Ensinam-nos que essa prisão constitui liberdade, quando verdadeiramente, apenas estamos apreciando nossa própria opressão.

Nosso sofrimento, assim como a solidão, é estrutural. Sim, meus caros, não trata-se de uma simples “preferência” quando você excluí mulheres pretas do seu hall de relacionamentos sérios, amizades e afetos sociais. Mas sim, uma construção social excludente que fixam em nossas mentes desde a infância. Mulheres pretas são lindas, inteligentes, possuem sentimentos, são companheiras, amigas e boas pessoas, como qualquer outra mulher pode ser. Não somos inferiores, não somos pedaços de carne em exposição e não estamos aqui para satisfazer ninguém. Precisamos desconstruir anos e anos de estereótipos nocivos que minam até os dias atuais a afetividade de mulheres pretas. Pois, merecemos vivenciar o amor, em toda a sua plenitude.


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by
Yasmin Morais

Escritora baiana, atriz e discente em Jornalismo na UFBA. Siga meu blog literário: minhadoceparanoia15.blogspot.com
 
Fonte: medium

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