por Nathália Geraldo,
Uma pesquisa da expressão "Mulherismo africana" no Google é sintomática: são apenas 8 mil resultados em português, direcionados principalmente para artigos em blogs e acadêmicos. Nunca ouviu falar desse termo? É que a teoria do Womanism, em inglês, criada em 1987 pela intelectual norte-americana Clenora Hudson-Weems ainda é pouco comentada no Brasil. Ela fala sobre a experiência de ser uma mulher negra e lutar contra o patriarcado e a opressão de raça e de classe.
O Mulherismo não tem a amplitude que o movimento feminista, por exemplo, tem por aqui: jogar "feminismo" no buscador gera mais de 35 milhões de links para o tema. Mas, é assunto em coletivos, nas universidades e até em vídeos no Youtube sobre o que é ser uma mulher negra em lugares distantes do continente africano.
Clenora é professora de inglês na Universidade de Missouri, nos Estados Unidos. Em um vídeo de um programa de TV publicado na página da faculdade, de 1993, ela define sua teoria frente ao feminismo negro -- outro movimento que também se preocupa com as opressões de raça, classe e gênero enfrentadas pelas mulheres negras, mas de um jeito diferente.
"Ser uma mulherista africana significa que temos controle de nossa nomeação e nossa definição. É lidar com a tripla dificuldade das mulheres negras: raça, classe e sexo, mas com sua própria ordem. E, para mim, vem a noção de priorizar a raça, porque é isso que nos ameaça mais do que tudo, eu acredito", explica. "Mesmo depois de vencer a luta pelas 'fêmeas', vamos continuar sendo negras".
Para a filósofa e mulherista Katiúscia Ribeiro, que é mestra e doutoranda em filosofia africana na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o Mulherismo africana (é designado no feminino mesmo, em referência ao latim, que para acadêmias mulheristas deve ser visto como uma língua moura/negra) é uma nova narrativa para reunir e identificar reivindicações das mulheres negras a partir de suas próprias experiências de vida. Com isso, de cara, o feminismo branco se distancia da teoria.
Feminismo negro e mulherismo são diferentes?
Imagem: @dazzle_jam/nappy.co
O mulherismo é diferente do feminismo negro por dois motivos, de acordo com a pensadora: como o feminismo foi um movimento iniciado por mulheres brancas, o feminismo negro se tornou uma perspectiva cunhada a partir da experiência das mulheres brancas; ou seja, não dá conta de todas as violências em que a população negra está inserida.
É o que diz Clenora. "Eu discordo da ideia de que as mulheres negras foram as primeiras feministas ou pré-feministas, porque o conceito foi nomeado e definido por mulheres brancas. Elas [feministas brancas] tinham suas próprias agendas e não incluíam a gente."
Katiúscia afirma que quem se diz mulherista também não coloca o gênero como assunto central. O homem negro, portanto, também entra na roda. É com ele e com a comunidade negra em geral que mulheres negras se propõem a pensar a questão do racismo, do genocídio que dizima jovens e adultos.
De fato, como explica a filósofa, o feminismo negro também se preocupa com as questões do homem negro. "Mas, o mulherismo não está ancorado em discussões de gênero que, pensado assim, não dão conta de pensar o racismo como um todo."
Pé de guerra com o feminismo?
Katiúscia é mulherista e explica que a teoria política reflete a mulher negra com a perspectiva de África
Imagem: Dani Villar/Arquivo Pessoal
Não, a narrativa não está em pé de guerra com o feminismo. Katiúscia comenta que a visão binária do Ocidente é que gera o desentendimento.
"Compreendemos a luta das mulheres pretas que nos antecederam. Mas, a mulher e o homem pretos precisam estar dentro da luta antirracista. Nós não morremos só por conta do gênero, mas pelo racismo estrutural que existe nesse país. Sempre vamos ser atingidos por um monstro com vários tentáculos e a cabeça dele é o racismo".
Um dos tentáculos que atingem as mulheres negras também é a violência apenas por ser mulher. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que entre 2017 e 2018, 61% das vítimas de feminicídio registradas no Brasil eram negras.
A filósofa pondera: "Por que com todas as ações de emancipação e de luta pelo gênero, o índice de feminicídio entre pretas aumenta? A agenda do feminismo não contempla isso. O feminismo é insuficiente pra dar conta, porque vivemos um genocídio físico e também espiritual, epistemológico. Não tem como a sororidade dar conta do racismo".
Falando de África
Nem mesmo o feminismo interseccional — expressão que reconhece as opressões de raça e de gênero sob as mulheres negras — dá "match" com o mulherismo.
Isso porque a teoria se define também por outro aspecto: a afrocentricidade. O termo não existe no dicionário, mas, como explica Katiúscia, "coloca a África como perspectiva, trazendo ancestralidade de um continente estritamente matriarcal, em que mulheres são as que gestam a potência do seu povo".
O resgate cultural e estético do que é afro, com a valorização dos cabelos crespos e cacheados e da identidade negra, por exemplo, também é bem-vindo.
"Eu tenho 39 anos e, na infância era impensável eu usar o cabelo que eu uso agora. Era a década de 80, em que piadas racistas eram comuns. Usar o cabelo natural, estampas coloridas em tecidos africanos, tudo isso, o mulherismo superapoia, porque estamos empretecendo a estética e a autoestima — e por que não empretecer também ideologicamente? No fim, a ideia é uma só: não estamos nos redefinindo a partir do que fizeram de nós, mas do que éramos", analisa a filósofa.
Fonte: uol
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