Por Ana Flávia Magalhães Pinto*,
No último sábado, 22 de junho, a Marcha das Vadias ocupou ruas e espaços do centro de Brasília, com a palavra de ordem: “Se ser livre é ser vadia, então somos vadias!”. Segundo estimativas oficiais, cerca de 4 mil pessoas comparecem ao protesto. Dias antes, a ativista negra Maria Luiza Júnior havia me convidado a estar com ela naquela manifestação em que, como “Mãe de Preto”, carregaria um cartaz com a mensagem: “Brasil, troque sua polícia racista por uma política humanista. Dê um basta ao genocídio da juventude negra!”. Declinei do convite, explicando que não iria por razões pessoais e em sintonia com a decisão tomada pelo Coletivo Pretas Candangas, do qual faço parte.
Já no dia da Marcha, cheguei a encontrar no Facebook uma fotografia de Luiza levantando o seu cartaz no meio da multidão, o que me deu uma ponta de alegria por saber que um tema importante para muitas mulheres negras se fez presente de algum modo. Qual não foi a minha surpresa quando a mesma Luiza compartilhou com alguns amigos um vídeo sobre um episódio lamentável ocorrido também na Marcha e que a fez deixar a atividade antes do fim. Era o registro do momento em que um homem negro, usuário de muletas para compensar a falta de uma perna, talvez um morador de rua e mentalmente alterado se posicionou à margem da Marcha fazendo gestos obscenos. A ação gerou uma reação instantânea. Um grupo de mulheres quase todas brancas fez um cerco a ele, coagindo-o com gritos, buzinas, cartazes, sem falar na quantidade de fotógrafos a registrar o fenômeno. Maria Luiza Junior também apareceu imediatamente, mas não para fazer coro com as demais. Ela tentava proteger o moço com aquele cartaz sobre extermínio da juventude negra, mas sua atitude não foi entendida nem por ele, nem pelas demais.
Confesso que aquelas cenas me deixaram atônita num primeiro momento, mas pouco depois resolvi compartilhar minha angústia com Janaína Damaceno, uma amiga muito sábia. Conversamos rapidamente a respeito e, horas depois, ela lançou o seguinte questionamento também na rede social: “Alguém explica isso: como mulheres em grande parte brancas e universitárias, hostilizando e perseguindo um homem negro, pobre, deficiente e com problemas mentais pode ser igual a luta contra o machismo? Sério que ele personifica o inimigo? A luta antimachista exclui o bom senso? Ele fez algo extremamente grave que não foi captado pelo vídeo?”.
Divulguei aquela reflexão e uma interessante discussão foi desenvolvida. Jurema Werneck prontamente entrou em contato com a organização da Marcha e obteve a resposta de que “esta cena − e mais uma − foi fruto da ação da comissão de segurança da Marcha contra os agressores. E, neste caso, os agressores. A organização da Marcha deve soltar uma nota ainda hoje sobre este episódio”. Enquanto seguíamos o debate e aguardávamos a nota, que até a tarde de quarta-feira (26) ainda não tinha saído, alguém chegou a ponderar se o vídeo teria mesmo mostrado tudo o que acontecera. O relato da própria Maria Luiza Júnior, entretanto, confirmou o que para muitas já era óbvio: “Vou falar como testemunha ocular. O rapaz simplesmente levantou a camisa, porque na marcha havia pessoas de peito nu. Ele estava exibindo o ‘tanquinho’. Depois dos primeiros gritos, ele deu as costas e saía em direção contrária à marcha. Em seguida, fotógrafos e povo cercaram-no e ele novamente levantou a camisa. Eu que estava próxima, temendo que a bermuda amarrada com cordão baixasse expondo sua genitália, coloquei o cartaz em cima. Ele reagiu batendo no cartaz. Tendo me ouvido pedir que não continuasse com aquilo, gesticulou para que me afastasse. Daí eu saí da marcha porque fiquei deveras perturbada com o racismo exacerbado das manifestantes que acorreram para ele como urubus em busca de carniça. No vídeo está claro que ele está caminhando ou tentando ir no sentido contrário da marcha. A filmagem acaba quando ele atira a muleta em direção ao estacionamento sem pessoa alguma. Eu estava lá, e isto está no vídeo. O que faltou ao vídeo foi a minha indignação com a agressividade daqueles que gritavam com o rapaz e ainda o impediam de sair da confusão”.
A julgar pelos posicionamentos enviados, o episódio tem tido tamanha repercussão por condensar uma série de insatisfações que há muito perturbam várias mulheres negras que se colocam em diálogo com organizações feministas de maioria branca. Aline Maia, por exemplo, ponderou: “Será mesmo possível construir um feminismo, com mulheres brancas, que pautem nossas demandas? Tenho muitas dúvidas! Porque, na experiência que tenho, vejo que na maioria das vezes é sempre isso que acontece: expomos nossas questões, expomos nossos corpos negros, nossas paixões e dores e a massa branca se lixa; e no final diz: ‘Viva a solidariedade feminina’”. O posicionamento de Carla Akotirene é tão instigante quanto: “Ando repensando essas articulações com movimentos de mulheres que combatem as violências de gênero a partir de outras modalidades de opressão contra corporeidades negras, contra os racialmente excluídos e querem se firmar revolucionárias”. Para Aline Matos, o acontecido encaixa-se nas problematizações feitas por Audre Lorde: “A recusa institucionalizada da diferença é uma necessidade básica para a economia do benefício que necessita da existência de um excedente de pessoas marginais”.
Quando as primeiras edições da Marcha das Vadias / Slut Walk aconteceram, em 2011, eu estava no período de doutorado sanduíche nos Estados Unidos. Era uma duplamente outsider, mas tentei acompanhar o que acontecia simultaneamente aqui e lá. Como a experiência de ser tratada negativamente como vadia é algo que faz parte da experiência das mulheres negras, a proposta não me soou de todo descabida. Porém, logo surgiram alguns questionamentos feitos por mulheres negras de ambos os países. O primeiro deles lembrava que tal tratamento não nos tem sido reservado apenas quando saímos às ruas com roupas curtas. A negação do nosso direito ao próprio corpo independe das roupas que usemos. O segundo era o fato de muitas meninas, jovens e adultas negras das periferias e dos guetos não considerarem uma transgressão sair para qualquer lugar de shortinho e blusinha ou roupas justas. Elas fazem isso corriqueiramente e soa até estranha a agitação por algo tão banal. Por outro lado, a proposta poderia fazer sentido porque o puritanismo nunca nos salvou.
Seja como for, não participei de nenhuma atividade de rua. A razão disso se deu pela forma como esses questionamentos foram tratados pelas feministas brancas organizadoras das edições da Marcha das Vadias / Slut Walk naquele momento e posteriormente. Ao retornar dos EUA, não foi difícil manter minha decisão, pois os relatos de ativistas negras reforçaram a minha dificuldade de aproximação e crença no diálogo produtivo com aquele feminismo. Como relatou Paula Balduino de Melo no debate virtual dos últimos dias: “Nós, Pretas Candangas, estivemos em uma reunião de organização da Marcha das Vadias no ano passado (ou retrasado, me ajude a lembrar Juliana Cézar Nunes), a convite de algumas organizadoras. Junto com outras mulheres negras presentes, posicionamos nossas divergências quanto à marcha. Divergências de princípio. Falamos sobre como temos de enfrentar cotidianamente a sociedade hegemônica para mostrar que não somos vadias, que não temos a ‘cor do pecado’. Falamos que não queremos reivindicar o direito de ser vadias, mas sim de ser médicas, advogadas, doutoras. O fato ocorrido dentro da marcha este ano reforça as diferenças”.
Mais uma vez diante desses relatos, penso que a facilidade com que aquele homem − que visualizei como a personificação de um Saci trágico − foi transformado no alvo da catarse das manifestantes está diretamente associada à dificuldade que as feministas brancas organizadoras da Marcha têm de entender e incorporar os questionamentos colocados pelas mulheres negras, feministas ou não. Falamos, recebemos um sorriso amistoso de “Eu vejo você”, e a coisa segue sendo feita de acordo com a vontade delas, como se expressassem a certeza de que “Isso que vocês dizem pode ser interessante, mas o que estabelecemos desde o exterior é mais”. Afinal, a Marcha das Vadias tem alcançado ampla legitimação e, portanto, deve ser tida como uma decisão acertada e ponto final.
Não há dúvida de que aquele homem foi infeliz e insensato em suas ações, a ponto de colocar em risco até mesmo a própria integridade física já degradada. Mas alçá-lo à condição de “O agressor”, isso já me parece no mínimo emblemático do que não se conseguiu avançar por meio de debates quase sempre exclusivos a GTs de Gênero e Raça. Mesmo sabendo das limitações não intencionais, não era isso que esperava de pessoas que se dizem simpáticas às dores dos loucos, usuários de droga, mendigos, etc. A sensação é de que os representantes da escória são super bem vindos desde que se comportem do jeito estabelecido pela esquerda branca e classista.
Não estou com isso pondo em xeque a legitimidade do feminismo em sim ou a viabilidade de uma luta coletiva. Trata-se apenas de mais uma tentativa de deslocar a centralidade confortável do feminismo branco, mantida ao longo de décadas, algo que o permite exercer o seu poder à revelia das experiências de outras mulheres, com destaque neste caso para as negras. Digo isso porque uma coisa que dificilmente entra na cabeça de várias de nossas interlocutoras é a necessidade que nós, mulheres negras, temos de defender a existência dos homens negros. Não falamos apenas do pai opressor. Pela nossa história, convivemos também com os registros do avô escravizado, do pai encarcerado, do irmão desempregado, do filho executado, todos pagando o preço de ser tidos como vadios!
Felizmente, mesmo num momento delicado como esse, há pessoas que buscam romper com os privilégios que desfrutam por serem brancas, expõem os erros de gente do seu próprio grupo sociorracial e se colocam para um debate franco conosco, a exemplo da professora Edlene Silva, que disse: “Lamentável!!!! Estava falando sobre a questão gênero, raça e movimento feminista numa palestra que dei no sábado para professores do GDF. Tem questões identitárias no movimento feminista que datam do século XIX, desde o sufragismo que ainda são tão atuais, infelizmente”. Ou o também professor Alexandre Magno, quando expôs suas reflexões: “Algumas feministas dirão que a ação das mulheres foi corretíssima, que aquele lugar era o lugar de fala delas e que seus gritos de liberdade seriam a única fala. Fiquei imaginando a mesma situação por outra óptica, a de um homem negro, pobre, deficiente físico, possivelmente sem instrução, atordoado por aqueles sinalizadores sonoros, cheios de gás e bem próximos ao ouvido dele, que de repente depara com as falas estampadas nos cartazes e que rapidamente, talvez pela sua compreensão de mundo e construção do modelo sexista, direcionou toda aquela fala ‘ao falo’. Será ele o inimigo? E a rua, que provavelmente ele habita todos os dias, o lugar a que foi destinado, separado, a sobra, não como o lugar masculino, mas o da exclusão (de tantos negros/as excluídos/as), agora tem dono/a? Limpem a rua, saiam do caminho que marcha vai passar… Mas uma vez aquele homem negro, sem uma das pernas, sem apoio, não tem lugar. Que fórmula mais maluca de se lutar por equidade! Contra o machismo, o racismo”.
Quando junto tudo isso, aquelas imagens do vídeo assumem dimensão épica, condensam uma série de violências contra as quais nós negras e negros temos batido e nos debatido. A essa altura do campeonato, se a nota da organização das Marcha das Vadias chegar, servirá apenas como mais um registro importante para nossas reflexões sobre essa instável parceria entre feministas brancas e mulheres negras. O que disserem não apagará o que aconteceu na Marcha. O antirracismo já é palavreado fácil, mas segue sendo uma prática difícil. Eis o lugar onde estamos. Para onde vamos? Isso depende do caminho que todas e todos estiverem realmente dispostas e empenhados a trilhar.
*Doutoranda e mestre em História, jornalista, integrante do Coletivo Pretas Candangas, e autora do livro Imprensa negra no Brasil do século XIX (Selo Negro, 2010).
Fonte: PretasCandangas.
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