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quarta-feira, 26 de julho de 2017

Jurema Werneck: ‘Ser mulher negra no Brasil de hoje é sinônimo de luta’

Em entrevista ao HuffPost Brasil, diretora da Anistia Internacional no Brasil fala sobre militância e combate ao racismo no País.


Por Andréa Martinelli,
“E sempre que surgia alguma notícia de Lecy Brandão ou de Angela Davis no jornal meus pais me falavam o quão admiráveis elas eram. E elas ainda são, né? E eles sempre diziam: ‘Elas estudaram'”.

Lembrar e se inspirar em mulheres que resistiram em um mundo hostil e violento. Foi, em parte, pela admiração por mulheres como Lecy Brandão e Angela Davis, que Jurema Werneck, 56 anos, fundadora da ONG Criola e atual diretora Institucional da Anistia Internacional no Brasil, conseguiu um impulso para vencer o desgosto pelos estudos, alimentado por um déficit de atenção na infância.

“Minha bisavó, minha avó, minha mãe, Angela Davis e Lecy Brandão foram mulheres muito importantes para que eu aprendesse sobre o mundo, de fato”, conta em entrevista ao HuffPost Brasil. Hoje, a menina bisneta de escrava que nasceu no Morro dos Cabritos, em Copacabana, no Rio de Janeiro, venceu, trilhou caminhos, é médica, especialista em comunicação e está no mesmo patamar das mulheres citadas por ela.

Para Werneck, hoje, 25 de julho, Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha é um dia não só para lembrar as mulheres que ajudaram a construir o passado, mas também para celebrar as que ainda trilham novos caminhos. “Hoje é um dia para marcar. Para celebrar. Nós, mulheres negras, somos parte desse continente, ajudamos a construir isso. Ser mulher negra no Brasil de hoje é luta. É sinônimo de luta”.

E uma luta dramática para combater a vivência de mulheres negras no Brasil, que é explicada em números: segundo o Mapa da Violência 2015, os homicídios de mulheres negras aumentaram 54% em dez anos no Brasil, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. No mesmo período, o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%.

Á frente da ONG Criola desde 1992, a ativista colocou na prática mecanismos para expor violências, muitas vezes, invisíveis e que, até hoje, promove iniciativas de educação, mobilização e campanhas de comunicação com foco no combate ao racismo. Como diretora da Anistia Internacional seu papel se amplia:

“A Anistia quer, cada vez mais, estar perto das pessoas que têm seus direitos violados, para agir de forma mais precisa, mais adequada. E ela me escolhe por isso. Eu sou uma ativista de chão: próxima de favelas, de movimentos de mulheres negras, movimentos indígenas; de várias esferas que lutam por direitos”.

Em conversa por telefone com o HuffPost Brasil, a diretora institucional da Anistia Internacional no Brasil falou sobre o que é ser uma mulher negra no Brasil atual, falou sobre suas inspirações combate ao racismo, e o atual momento político no País e no mundo.

Leia a entrevista completa:

Mulher, negra, luta

“Ser mulher no Brasil de hoje, de certa forma, é ser parecida com ser mulher no Brasil… desde o começo. É ter que enfrentar o racismo, a violência, a exclusão, condições de vida extremamente precárias. E, por outro lado, ser mulher negra no Brasil de hoje é, como no passado, protagonizar lutas cotidianas para ocupar lugares e para que o mundo seja um lugar mais justo, seguro e íntegro para cada uma de nós. Ser mulher negra no Brasil de hoje é luta. É sinônimo de luta.”

O que mudou?

“Bom, eu acho que… Eu acho que viver em um País racista sempre é e foi muito ruim. Então, dessa perspectiva, isso não mudou. Continua sempre sendo muito ruim. Mas do ponto de vista mais material, concreto, eu tive o privilégio de conviver com a minha bisavó que morreu aos 101 anos e nasceu em 1888 e eu sei que muita coisa mudou. A experiência dela como menina, jovem, e a experiência dela como adulta, idosa foi muito mais difícil do que a que a minha foi. E eu posso dizer que as jovens de hoje em dia, ainda vivem muitas coisas ruins, muitos desafios, vivem de um jeito diferente também. Inclusive, essa possibilidade. A possibilidade de encontrar uma brecha. A brecha de encontrar um caminho melhor do que o jeito como a minha bisavó viveu. Assim como eu fiz. Mas ainda assim continua muito difícil. Cada qual tem o seu fardo para carregar.”

Sobre as que vieram antes de nós

“Nossa. Sim. Bom, a mãe dela tinha sido escrava. Então ela contava coisas que… Ela já nasceu em 88, ela não viveu a escravidão, mas viveu o ruim que a república significou para a população negra. Por que o fim da escravidão foi uma esperança, mas a república que foi instalada fez com que a ideia de liberdade fosse destruída quotidianamente. Os descendentes de escravos, ex-escravos que estavam aqui no Brasil na primeira… no início do século XX, eles eram violentamente vistos como indesejáveis e tiveram que se virar sozinhos para ter uma vida digna. Minha bisavó teve uma vida muito difícil aqui no Rio de Janeiro. Ela nasceu em Minas, mas veio para o Rio depois. Ela teve uma vida muito difícil no Rio de Janeiro e é uma construção isolada. Não isolada a pessoa, pessoa, qualquer. Os negros e negras sempre se ajudaram em comunidade, mas era uma carga muito grande. O nome da minha bisavó era Maria Terrínea do Amaral. Era um fardo, mas vale a pena destacar que essas mulheres foram as que lutaram para a gente chegar até aqui.”

Sobre Lecy e Angela

“Eu acho que já falei da minha bisavó, ela foi muito importante para mim, mas também para toda a minha família, que era uma família gigantesca, com agregados, era muita gente. As famílias se organizavam em torno dela. Então, era muito importante que ela estivesse ali. A minha mãe foi uma mulher muito importante também por ser uma resistência no cinema, o nome dela era Dulcineia Werneck. Ela era uma pessoa muito carismática, também uma autoridade religiosa, parte dessa família que já era grande, que também cresceu em torno dela. E meus pais, eles também me apresentaram, me deram dois exemplos para seguir como criança que era a Angela Davis e a Lecy Brandão. E eles me deram esse exemplo muito como estímulo para eu estudar. Porque eu tinha déficitde atenção e tinha dificuldade na escola e eu detestava a escola. E sempre que tinha alguma notícia de Lecy Brandão ou de Angela Davis eles me apresentavam e falavam que elas eram admiráveis. E elas ainda são. E eles sempre diziam: “Elas estudaram”. E, então, minha bisavó, minha mãe, Angela Davis e Lecy Brandão foram mulheres muito importantes para que eu aprendesse.”

Você consegue ver uma evolução?

“Eu tenho 56 anos e, na medida em que eu fui crescendo, eu fui vendo, e tive acesso às coisas que minha avó e minha mãe não tiveram. Naquela época não tinha cotas, por exemplo. Na minha época ainda não era uma lei, não tinha esse direito garantido. Mas mesmo assim eu tive um pouco mais de acesso aos estudos. E na universidade em que eu estava — a faculdade de medicina — quase não tinha negros. Tinham 3 naquele tempo. Nós éramos quatro, e só eu de mulher. Mas era um crescente de sensação que o momento do direito iria chegar. Eu ter entrado na faculdade era a vivência de um direito. No sentido de que isso não era viável e foi uma vitória. A vivência da escola publica até a universidade era impensável para a minha mãe. Mas na minha geração já foi. E para as outras gerações até agora ainda é um desafio gigantesco. Outro dia eu me dei o direito de assistir televisão. E, talvez, uma coisa que as gerações mais novas não notem, me chamou atenção: existem muitos mais negros na televisão hoje. Na minha época quase não tinha. Não tinha mesmo. Algumas coisas mudaram. E estão por aí: negro na propaganda… não existia isso. Então eu vi um crescendo de direitos na minha experiência. Mas também estou vivendo uma experiência hoje de que parece que tudo está se perdendo. Ainda mais nesse momento pelas ações do Congresso e, em alguns casos, até por ações do Legislativo e do Judiciário.”

O racismo (nada) velado

“Para além da questão de gênero, existe um fator muito mais potente na sociedade e que produz exclusões. É o racismo. O racismo é central na história da sociedade brasileira. É o racismo que faz a diferença principal em sociedade. Que a divide em duas e, a partir daí, vem a desigualdade de gênero e aprofunda ainda mais essa divisão, em especial para as mulheres negras. O racismo é o fator principal, quase que central da construção da sociedade contemporânea.”

Como transformar?

“É preciso reconhecer que racismo significa privilégio. Privilégio branco. E que esse privilégio é material. Você vê que a riqueza do País está concentrada na mão de brancos, em detrimento de indígenas e negros. Mas é um privilégio também simbólico. Todo o conceito de bom, de belo, do que está certo, está vinculado à população branca. Esse é um privilégio vinculado ao racismo. E obviamente ocupando os melhores postos, morar nas melhores regiões da cidade, comer as melhores comidas, ter acesso à riqueza — que, diga-se de passagem é produzida muito pelas mãos negras –, então, porque é difícil combater o racismo no Brasil? Por que combater o racismo significa retirar o branco da posição em que está. E, para que isso aconteça de uma forma significativa, requer uma aliança muito mais significativa com a parte branca da sociedade — que, em sua maioria, não está interessada em aderir a esta transformação. Penso que é difícil, mas não impossível. A nossa conversa aqui, agora, prova que existem setores da sociedade que estão mais interessados em olhar para isso”.

Como combater?

“Precisa ser de diferentes formas e em diferentes níveis. Por exemplo, é preciso nomear. Lembra dos 12 passos dos Alcoolicos Anônimos, em que o primeiro passo é nomear? Então. É preciso apontar e dar nome ao que é racismo. É nomear, analisar, compreender, saber do que se trata, definir estratégia de mudanças e promover as reparações. E isso são coisas que estão ao alcance de todos. Todo mundo tem ferramentas para, de alguma forma, em algum ambiente, enfrentar o racismo. E é muito importante que a gente enfrente o racismo, inclusive, desde a perspectiva do controle do Estado. O privilégio branco de controlar a ação do Estado significa controlar a distribuição da riqueza, que é feita, muitas vezes, pela mão de todos e controlada apenas por uma pequena parte da população.”

Falar e ser vista

“Para a gente ser ouvida a gente só precisa falar. E o que eu quero dizer com isso? O que você está fazendo comigo, agora, abrindo espaço para eu falar o que eu penso, é uma forma de fazer isso, né? As mulheres negras precisam ter acesso a todos os canais. É verdade que, também a população negra, paralela aos espaços hegemônicos, construíram seus próprios canais de fala. Mas é importante que tenham canais compartilhados entre todos. É preciso estabelecer os canais e compartilhar isso. E acabar com os privilégios do controle. E, nesse sentido, eu posso falar sobre a luta do movimento negro. Essa luta está mudando, como todas as lutas estão. Novas técnicas, novos canais, novos sujeitos, uma quantidade imensa de jovens, meninos e meninas tem participado cada vez mais do movimento e isso é muito bonito, muito importante. Isso significa em lutar diariamente contra o genocídio, contra a violência policial, contra a violência do estado, contra a violência sexual de mulheres e, sobretudo, de encontro à afirmação de identidades: do nosso direito de usar turbante, de ter o cabelo black, de ser quem somos”.

Na contramão de direitos, o retrocesso

“Pois é. O conservadorismo está ganhando mais voz pública. Antes ela tinha uma voz existente, mas um pouco mais silenciada. Essa voz só está com um pouco mais de espaço de expressão. Tem um lado disso que é graças à nossa luta, que é por expressão. Por todo mundo poder ocupar a esfera pública. Então, muito antes isso não era possível. Quando essas vozes aparecem, quando elas se colocam na esfera pública, o primeiro efeito é de nos assustar muito. É justo que os discordantes anunciem a sua discordância, é claro. Mas o ruim é que traz ódio, traz essa narrativa “nós contra eles”. O nosso lado, que queria direitos, valorizou a diferença, sempre. O outro lado advoga outra coisa. E isso nos coloca naquele momento que precisamos ir além do medo. Ter coragem é essa coisa de administrar o medo na ação. Temos uma arma”.

E o Brasil?

“Com certeza (as reformas) são uma forma de retrocesso. A PEC do Teto é muito grave, no sentido de que ela acaba com ferramentas que a gente tinha para lutar, para alcançar e garantir mais direitos. As propostas de reforma trabalhista e previdenciária também são uma desvantagem do mecanismo que a gente tinha para lutar para que boa parte da população acendesse. E, diante disso, é preciso prestar atenção: as mulheres negras já estavam excluídas desse processo todo. Elas são a maioria da população e que está no mercado informal. Ou seja, a previdência já não nos alcançava. Nós não estamos perdendo direitos. Estamos perdendo a esperança de algum dia ter direitos. A reforma trabalhista está aprovada, mas ainda tem muita luta. Tem muita coisa para fazer.”

A ressignificação

“Toda essa bagagem, essa casca, a gente traz da experiência com a dor, com a ferida. Na Anistia, nós lidamos com gente que tem os direitos violados veementemente e essas pessoas são ótimos exemplos de resistência. A condição que de uma mãe que teve seu filho morto pela polícia do Rio de Janeiro, por exemplo. Essas mães estão em luta e não é isso que vai trazer seu filho de volta. Mas elas fizeram uma escolha olhando para a frente. É possível apostar no futuro. É possível lutar. É possível se juntar com outras pessoas. É possível fazer movimento. O medo tem a utilidade de dar naturalidade à nossa coragem. Não é para nos paralisar, e para dar ação à coragem.”

Fonte: Huffpost Brasil.

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