Em abril de 2002, com a renúncia de Anthony Garotinho para concorrer à presidência da República, assumia o governo do Rio de Janeiro sua vice, Benedita da Silva, pelo curto período de nove meses.
*Por Edson Lopes Cardoso Do Brado Negro,
O “Jornal do Brasil” fez o registro do fato de uma forma que merece nossa atenção (edição de 07.04.2002). Colocou foto colorida do rosto emocionado de Benedita ao lado de imagem não usual, sombria mesmo, em preto e branco, da baía de Guanabara.
“Imagens surreais” era o título da legenda, que se referia às duas imagens: “Primeira negra a governar um Estado, militante do PT e evangélica, Benedita da Silva cantou e chorou na cerimônia de posse. Vai administrar instalada no palácio Guanabara, ponto histórico da cidade retratada em imagens surreais na exposição do fotógrafo Renan Cepeda, no Rio Design Center”.
Ao aproximar a imagem de Benedita, que tomava posse como governadora, de uma imagem familiar da cidade, mas que se apresentava distorcida pela visão do artista, o JB ilustrava o argumento racista de que com uma governadora negra tudo se transformava na paisagem, tudo ficava preto.
No ano seguinte, em 2003, em sua sabatina no Senado para exercer o cargo de ministro do STF, Joaquim Barbosa dizia ter “esperança de que, nos próximos dez ou quinze anos, uma indicação como esta seja uma coisa banal. Essa indicação contribuirá seguramente para aquilo que chamo – com um palavrão, e gostaria que V. Exas. me perdoassem – de a desracialização da esfera pública no Brasil. Ou seja, se, hoje, uma indicação dessa natureza provocou todo esse estrépito é porque a sociedade, de alguma forma, está racializada”.
A desracialização da esfera pública e da sociedade é uma expressão elegante com que se pode evitar a palavra racismo. Numa sabatina, cercada de tensões, parece importante selecionar o que é aceitável do que não é aceitável e se apostou na velocidade presumida de mudanças profundas na sociedade brasileira.
Mudanças que não ocorreram, o que acabou provocando a questão levantada por Joaquim Barbosa em 2017, respondendo aos que expressam o desejo de vê-lo candidato à presidência da República: “O Brasil está preparado para ter um presidente negro?”.
Não sei se alcanço toda a extensão de significados desse “estar preparado”. As formas de dominação e os poderes que oprimem o negro no Brasil não se alteraram nesses “dez ou quinze anos”. “O Atlas da Violência” do Ipea, divulgado no início de junho, para ficarmos num exemplo recente, explicita uma dimensão das relações de guerra que a sociedade brasileira mantém contra o segmento negro. Por outras palavras, o Brasil não está preparado para deixar viver um jovem negro ou uma jovem negra.
No período em que tudo deveria melhorar, conforme a previsão de Joaquim Barbosa em 2003, foram assassinados mais de quatrocentos mil jovens negros. Ou extermínio, ou desqualificação, exclusão e desemprego são essas as condições históricas em que deve prosperar uma candidatura negra à presidência da República. Não dá para fugir dessa condição de existência, real, material e concreta da maioria da população.
Ou, dizendo de outra maneira, o país que não permite a sobrevivência dos negros de diferentes idades aceita sob que condições uma candidatura negra? Parece-me que a questão fica posta assim de modo mais apropriado. Aqui devemos temer a renovação, às nossas custas, de fórmulas em que ninguém mais acredita. Não há, efetivamente, sinais de ampliação da convivência, exceto o mínimo indispensável ao aniquilamento e à sujeição extremada.
Há uma guerra, certo? A guerra atende a que objetivos políticos? Quando falamos em genocídio e extermínio, estamos falando de objetivos que pretendem alcançar o fim de toda a população negra, não é isso mesmo? Qual será então o significado de uma candidatura negra numa sociedade disposta a pôr um ponto final na existência dos negros?
A gente fala que não dá, depois torce a língua. Lembro-me de deputado federal negro do Rio de Janeiro, uma das maiores concentrações de melanina que já passaram pelo Plenário da Câmara dos Deputados, que não perdia ocasião para louvar a princesa Isabel e “resgatar” o 13 de Maio. Era um sebo. Quem sabe o que virá por aí?
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*Edson Lopes Cardoso - Jornalista e Doutor em educação pela Universidade de São Paulo
Fonte: Brado Negro.
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