por Heloisa Villela,
Conheci Marina Corradi no lobby de um hotel de Havana, em Cuba, no fim de fevereiro de 2010.
Nós duas aguardávamos a chegada do presidente Lula que, de Cuba, seguiria para o Haiti.
Marina não é jornalista como eu. Ela já era médica, formada pela Universidade Latino Americana que prepara, em Cuba, profissionais de saúde de vários países.
Marina estava a caminho do Haiti a convite dos cubanos, para participar de uma brigada internacional de ajuda ao país recém-devastado por um terremoto.
Eu desembarquei no Haiti pouco mais de 24 horas após o terremoto, em janeiro, e sabia bem o que Marina iria encontrar por lá.
Pensei, na época: “Que coragem e que disposição!”
Ela não tinha obrigação de ir. Inscreveu-se voluntariamente e, quando veio o convite, se afastou do trabalho para participar da missão humanitária.
Agora, Marina está no Brasil. É médica de família no posto de saúde da cidade de Juatuba, em Minas Gerais. Um município que tem 30 mil habitantes onde ela atende a população rural.
Os problemas mais comuns que ela trata são diabetes, hipertensão e gravidez de adolescentes.
Marina disse que está muito satisfeita com o trabalho e, ao mesmo tempo, faz um mestrado na Unicamp em saúde coletiva.
Ela quer se capacitar para ajudar um número ainda maior de pessoas. Por quê?
“Acho que a gente não está aqui à toa. Acho que a gente veio aqui para contribuir de alguma forma e a forma que eu encontrei foi essa. A medicina”, disse.
Antes de atender a população rural de Juatuba, Marina passou quatro anos trabalhando na área administrativa da Secretaria de Saúde porque o diploma de Cuba não tem revalidação imediata no Brasil, como tem na Espanha.
Ela deu entrada na papelada junto à Universidade do Ceará e esperou a revalidação, que veio quatro anos depois.
Agora, lá de Juatuba, ela acompanha a discussão a respeito do programa Mais Médicos e o desembarque, no Brasil, dos primeiros colegas cubanos.
– Fico até emocionada. Queria muito que isso acontecesse. O Brasil abrir as portas para médicos de fora, especialmente de Cuba, porque a população brasileira precisa conhecer uma atenção integral de saúde e os médicos cubanos têm essa formação. Eles estão capacitados para isso. E Cuba não difere muito do Brasil em muitos pontos.
Prossegue:
“Por exemplo, lá eles têm uma população que mora na serra, que não tem luz. Algumas comunidades não têm água ou saneamento básico. Os cubanos estão acostumados a atender todo tipo de pessoa, em qualquer situação. Eles não exigem muita tecnologia para fazer os atendimentos. Eu não estou dizendo que a falta de infraestrutura não prejudica o atendimento. Prejudica, sim. Ou melhor, limita. Mas uma infecção urinária que incomoda prá caramba, uma amigdalite, você não precisa de uma infraestrutura super-ultra-excelente para resolver.
Marina estima que é possível fazer 80% do atendimento com o básico.
– Você consegue fazer um controle, um tratamento, iniciar o tratamento com a clínica. O município onde estou hoje faz parte da região metropolitana de Belo Horizonte e não usufruo de nenhum aparelho super-avançado para tratar a maioria dos meus pacientes. É um caso ou outro. Mas, na maioria, com os exames de rotina, com acompanhamento, com diagnóstico, a clínica e o exame físico você consegue encaminhar.
Foi apenas a primeira crítica de Marina aos argumentos das organizações que são contra a vinda dos médicos cubanos.
Ela reclama que os que são contra apenas reclamam, mas não oferecem solução para as populações que não têm atendimento.
– Não há proposta. Há quantos anos esse lugares não tem médico? Isso não é um problema recente. Mas ninguém teve a iniciativa de apresentar uma proposta e pensar numa solução. A cobrança de infraestrutura é uma cobrança, mas já foi provado que lugares com infraestrutura também estão sem médicos. Esse discurso de que só fala da infraestrutura não é suficiente.
Ela acredita que a simples chegada de um médico pode ser motivadora.
– A maneira de criar infraestrutura é com o médico. Ele pode puxar por isso. Não dá pra esperar a situação ideal para o profissional vir. Traz o profissional e vamos atrás da situação ideal. E a população continua sem atendimento. Não dá mais. O Brasil está crescendo muito, não pode ficar nessa situação. Tem outras opções. Não dá mais para fechar os olhos para isso. Não dá para esperar um médico decidir ir para a cidade que não tem shopping e onde celular não funciona.
Marina vê exagero na reação das entidades de classe:
– Eu acho que foi uma sacudida para a categoria médica porque eu acho que o lugar tá lá. As pessoas têm direito de optar em não ir. Às vezes as condições não são ideais, não vai ter lazer, não vai ter uma vida pessoal legal, ok. Acho que é uma opção, tem o direito de não querer ir. Mas não permitir que alguém vá fica meio sem sentido. Acho que essa reação é natural. São mais médicos, mais pessoas que vão ocupar lugares que ninguém está ocupando.
Ela está certa de que o apoio aos cubanos vai crescer depois que eles passarem a trabalhar no Brasil.
– Tenho certeza que esses médicos cubanos vão conquistar o carinho da população, sem dúvida. Vão cumprir com o papel da atenção básica e acho que isso sacode um pouco a categoria. Acho também que há uma tentativa de reserva de mercado. E acho que essa situação traz uma necessidade para os médicos repensarem seus posicionamentos, as condutas, porque não quer tem quem queira, na verdade. Nós não somos exclusivos. Não somos os únicos. Existem médicos que topam ir prá onde a gente não quer ir. Eu sou super a favor do programa.
A brasileira acredita, no entanto, que é preciso criar uma carreira para os médicos do SUS.
– Faria algumas ponderações porque acho que o governo poderia pensar em uma carreira dentro da atenção básica. Dentro do SUS, para todas as categorias. Não apenas para os médicos. Com concurso. Uma carreira em que ele vai progredir. Que crie um vínculo também. Que estimule o profissional a não sair daquele lugar. A não sair do SUS. Acho que isso seria positivo. Mas no geral, sou super a favor [do Mais Médicos]. Fico super feliz com essa decisão porque acho que a população realmente precisa.
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Marina apresentou uma palavra que define como ela vê a sociedade brasileira: medicalocêntrica. A população, as autoridades e a cultura são, para ela, medicalocênticas. Marina acha que a profissão é sobrevalorizada.
“Não é que não tenha valor”, esclarece, mas os médicos ocupam um papel de destaque e de importância incomparável e, para essa médica, eles são apenas uma parte da equipe. “Eles alegam: estudamos mais tempo, temos mais responsabilidade. Ok, guardemos as devidas proporções, mas o médico é apenas mais um integrante da equipe. No Brasil os médicos ainda são figuras diferenciadas. Acho que isso é um fator cultural”.
Ela acha que, antes de mais nada, a Medicina no Brasil precisa se reaproximar da população.
Fonte: Viomundo.
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