Eldridge Cleaver
(Tradução: Gilza Marques)
(Tradução: Gilza Marques)
Rainha-Mãe-Filha de África
Irmã de Minha Alma
Esposa Negra de Minha Paixão
Meu amor Eterno
Te saúdo, Rainha minha, não com o gemido obsequioso de um Escravo temeroso ao qual já te acostumaste, e tampouco te saúdo com a nova voz, com as insinuantes súplicas da suntuosa Burguesia Negra, nem com o uivo intimidador do rude Liberto, senão que com minha própria voz te saúdo, com a voz do Homem Negro. E ainda te saúdo de novo, minha saudação não é nova, senão tão velha como o sol, a lua e as estrelas. E mais que assinalar um novo começo, minha saudação significa unicamente meu retorno.
Regressei de entre os mortos. Te falo desde o Aqui e o Agora. Estive morto durante quatrocentos anos. Durante quatrocentos anos foste uma mulher sozinha, despojada de seu homem, uma mulher sem companheiro. Durante quatrocentos anos nem fui teu homem, nem meu próprio homem. O branco se interpunha entre nós, gravitada sobre nós, andava ao nosso redor. O branco era teu homem e meu homem. Não tome rapidamente esta verdade, Rainha minha, pois ainda que o feito do qual te falo esteja entranhado até o tutano dos ossos e tenha diluído nosso sangue, temos que trazê-lo até à superfície da mente, ao reino do conhecimento, fixar nele o nosso olhar e contemplá-lo como uma serpente enroscada no berço de um menino, ou entre as frescas flores da tumba de uma mãe. Tem que ser ponderado e compreendido com o coração, pois a bota do homem branco é nosso ponto de partida, nosso ponto de Resolução e Retorno, o pivô ensanguentado de nosso futuro. (Porém quero que recordes que antes que pudéssemos sair da escravidão tivemos que ser rebaixados do nosso trono.)
Através do abismo escancarado da masculinidade negada, de quatrocentos anos sem Testículos, nos enfrentamos um ao outro, Rainha minha. Sinto uma dor profunda e aterradora, a dor da humilhação do guerreiro vencido. A vergonha do corredor de pés ligeiros que tropeça ao começar a corrida. Não tenho justificativa. Não posso suportar olhar-te nos olhos. Não havias notado (sem dúvida, já o tenha notado: quatrocentos anos!) que durante quatrocentos anos havia sido incapaz de olhar-te nos olhos? Me tremo por dentro cada vez que me olhas. Descubro…desde o raio de seu olhar, desde o profundo lugar em que ele está escondido, um segredo há muito tempo guardado. Tal é a verdade, sem adornos. E não que eu tenha que me sentir justificado dadas as circunstâncias, em tomar tais liberdades contigo, senão que quero que saibas que temia olhar-te nos olhos porque sabia que neles encontraria refletidos uma denúncia despida da minha impotência e um desafio inevitável a redimir minha masculinidade vencida.
Rainha minha, me custa dizer-te o que guarda meu coração pra ti hoje – que é o que guardam em seu coração todos meus irmãos negros para você e para todas as suas irmãs negras – e temo que fracassei a menos que venha até mim, a menos que te ponhas em harmonia comigo com a antena de seu amor, o amor sagrado que não me pudeste dar porque, estando eu morto, era indigno de recebê-lo; esse perfeito e radical amor do negro do qual se alimentaram nossos Antepassados. Deixa-me beber do rio do teu amor em sua fonte, que as linhas de força de seu amor corram por seu centro à minha alma e curem a ferida de minha Castração, deixa que meu convexo exílio termine sua dolorosa Odisseia em sua essência côncava que recebe para dar. Flor da África, somente mediante o poder libertador de seu re-amor minha virilidade pode se redimir. Pois é perante teus olhos, perante você, que minha necessidade deve justificar-se. Só você, você, você e só você pode condenar-me ou me dar a liberdade.
Convença-te, Irmã de Ébano, que o passado não é uma paisagem proibida, à qual não devemos nos atrever a olhar, por um medo fantasmagórico de ficarmos convertidos, como a mulher de Ló, em estátuas de sal. Mas bem, o passado é um espelho onisciente: voltamos até os nossos olhos e vemos refletidos: o que fomos, o que somos agora, como chegamos a este estado e em que nos estamos convertendo. Negar-se a olhar no Espelho de Então, coração meu, é não querer ver a face da Aurora.
Morri a sétima morte de um gato, vi o Diabo cara a cara e dei as costas a Deus, comi na Panela do Porco, e desci até o mais baixo do Poço, me meti na pocilga e livrei meus Testículos das faces do leão que os tinha apanhado com os dentes!
Beleza Negra, em silêncio impotente escutei, como se compusesse uma sinfonia de lamentos, seus gritos de auxílio, suas vozes angustiadas de terror que reverberam pelo Universo e pela mente, como um milhão de gritos dispersados por anos de dor , que se fundem em um só som de pesar que transpassa e sangra minha alma, uma voz à vermelha branca ferida, que me queima o cérebro e faz estalar o foguete do pensamento, um som de garras e dentes afilados para desgarrar o coração, um som de lamas crepitantes, um som ardente, ardente, queimante, um som para fundir o aço de meus Testículos, um som de fogo Blue, um som Blueseado, o som do moribundo, o som de minha mulher transpassada de dor, o som da dor de minha mulher, O SOM DE MINHA MULHER CHAMANDO-ME, A MIM, OUVI QUE ME PEDIA AUXÍLIO, OUVI ESSE LAMENTOSO SOM, MAS ABAIXEI A CABEÇA E NÃO FUI ATÉ ELE, OUVI O PRANTO DE MINHA MULHER, O GRITO DE MINHA MULHER, OUVI A MULHER SUPLICAR À BESTA POR MIM, OUVI MINHA MULHER MORRER, OUVI O SOM DE SUA MORTE, UM SOM DE ALGO QUE SE QUEBRA, UM SOM DE ALGO QUE SE ROMPE, UM SOM QUE SOAVA A COISA ÚLTIMA E FINAL, O SOM PÓSTUMO, O SOM DA MORTE, O OUVI, OUÇO-O TODOS OS DIAS, OUÇO-O AGORA, TE OUÇO AGORA… TE OUÇO… Te ouvi então… teu grito me chegou como uma queimante centelha que deixou uma cicatriz branca em minhas costas. Num estupor covarde, com coração palpitante e joelhos vacilantes, contemplei o chicote de morte do Escravista estalar no ar e cortar com finos dentes tua delicada carne, a terna carne da Maternidade Africana, arremessando prematuramente a Vida sobressaltada de seu desgarrado e ultrajado ventre, o ventre sagrado que embalou o primeiro homem, o ventre que encubou a Etiópia e povoou a Núbia, que deu faraós ao Egito, o ventre que pintou o Congo de negro e pariu os Zulus, o ventre de Meroé, do Nilo, do Niger, o ventre de Songai, do Mali, de Gana, o ventre que sentiu o poder de Chaka antes de existir o sol, o Ventre Sagrado, o ventre que conhecia o futuro de Jomo Kenyatta, o ventre dos Mau Mau, o ventre de todos os negros, o ventre que deu a vida a Toussaint L’Overture, que acalentou Nat Turner, e Gabriel Prosser, e Denmark Vesey, o ventre negro que entregou desfeito em lágrimas a cadeia interminável da Flor e Nata de África, o Sal Negro da Terra, essa anônima e interminável cadeia negra que se afundou gemendo no ouvido do grande abismo, o ventre que recebeu e alimentou e reteve firmemente a semente e deu a mudança à Verdade Estabelecida, e à irmã Tubman e a Rosa Parks, e a Bird, e a Richard Wright, e às demais obras de arte que levam os nomes de Marcus Garvey, Dubois, Kwame Nkrumah, Paul Robeson, Malcolm X e Robert Williams e que pariu com dor e amou Elijah Muhammad, porém sobretudo a esse anônimo ser que arrancaram de seu ventre com um rio de sangue assassinado que salpicou o lodo e se afogou nele. E a Patrice Lumumba, e a Emmet Till e a Marck Parker.
Oh, alma minha! Me converti num choroso covarde, num inútil asqueroso, em um lambe botas vil e abjeto, estando minha vontade de oposição petrificada por um medo cósmico ao Amo. Ao invés de incitar os escravos à revolução com oratória eloquente, pus panos em suas feridas e cantei eloquentemente o Blues! Ao invés de lançar desdenhosamente minha vida na cara do meu Atormentador, derramei seu precioso sangue. Quando Nat Turner tratou de libertar-me do meu Medo, meu Medo me entregou ao Carniceiro e se converteu em monumento martirizado de minha Castração. Meu espírito estava indeciso e minha carne era débil. Ó infâmia eterna!
Eu, o Eunuco Negro, privado dos meus Testículos, caminhei pela terra com a mente congelada e guardada em um Frigorífico. Me importava menos matar um homem ou mulher negros do que esmagar uma mosca, ainda que, para o branco, era capaz de recolher até mil libras de algodão por dia. Que proveito pode haver nos esforços cegos, frenéticos dos (Culpados!) Eunucos Negros (Justificadores!) que ocultam suas feridas e se burlam da verdade para mitigar sua culpabilidade mediante os sofismas aguados que postulam uma Democracia Universal de Covardes, que assinalam que na história ninguém pode se esconder, e que se não em um momento, indubitavelmente em outro, o calcanhar de ferro do Conquistador esmagou os Testículos de Todo e Cada Um dos Homens! As memórias de ontem não pararam as torrentes de sangue que fluem agora do meu inglês. Sim, a história é uma espécie de texto escarlate, cujo título está escrito com sangue humano. Mais exércitos do que os que se mencionam nos livros plantaram as bandeiras em solo estrangeiro e deixaram como rastro a Castração. Mas nenhum Escravo deveria morrer de morte natural. Há um ponto que termina a Prudência e começa a Covardia. Que uma bala do opressor me transpasse a cabeça na noite do cerco. Por que se dança e se canta no Dormitórios dos Escravos? Um escravo que morre de causa natural pesará menos do que os moscas mortas na Balança da Eternidade. A esse homem, mais que chorar por ele, haverá que ter compaixão.
Mulher negra, sem que perguntes como, simplesmente sobrevivemos a nossas marchas forçadas e nossas penas e fadigas pelo Vale da Escravidão, do Sofrimento, e da Morte. Por esse vale que oculta a nossa vista, esse nevoeiro errante. Ah, que espetáculo, que sons, e que sofrimentos envolvem esse nevoeiro! E tínhamos pensado que nossa áspera subida para sair desse cruel vale nos levaria a algum lugar fresco, verde e suave, banhado de sol, mas encontramos uma selva, uma solidão selvagem e feroz povoada de ruínas.
Porém coloque tua coroa, Rainha minha, e levantaremos uma Cidade Nova sobre essas ruínas.
Fonte: Pensamentosmulheristas.
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