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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Trabalho doméstico: ‘ela é da família’ não é amor, é navalha na carne

Por Charô Nunes para as Blogueiras Negras,



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Eu, mulher negra filha de uma mãe negra e trabalhadora doméstica me senti profundamente atingida por esse estereotipo profissional, mesmo não comprovando ele na prática. Dentro de onde cresci sempre fui coagida pelos meus pais a ter um futuro diferente do que eles tiveram, a estudar, ter um emprego que me fizesse feliz, dentre outras coisas que todos os pais desejam para os seus filhos.

Mara Gomes,

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ANTES DE TUDO

A lógica que constroi a ideia de que o trabalho doméstico é feminino é a mesma que o direciona para a mulher negra. O machismo tem um irmão e o nome dele é racismo. Um dos primos de primeiro grau atende pelo nome de classismo. Quando estão todos de mãos dadas, são as mulheres negras que sofrem. Mais ainda quando a opressão se dá portas adentro, espaço tão hostil à urbanidade, onde estamos vulneráveis. Porque algumas mulheres e alguns trabalhos são mais importantes que outros a ponto de ser lucrativo pagar alguém, quase sempre negra, para emancipar a patroa quase sempre branca.

Esse texto é sobre tudo isso. Não é sobre família. É sobre outra coisa.


Sou Trabalhadora Doméstica. Tenho direito a ter direitos iguais. Campanha


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URBANIDADE

Lá pelas tantas de As vinhas da ira (John Steinbeck, 1939) toda a família Joad consegue emprego numa fazenda. A sobrevivência era tarefa tão espinhosa que o emprego como bóia-fria era nada menos que sua salvação. Haviam porém uma série de exigências. Uma delas restringia a quantidade de carne a que cada funcionário tinha direito, outra era a de permanecer nos aposentos durante à noite. A prática de misturar aquilo que é ambito de trabalho e aquilo que basicamente é a vida pessoal do empregado é bastante desejável, pelo menos do ponto de vista do empregador.

Esse é um dos meios de apartar o indivíduo da vida política, por exemplo. Ou ainda daquilo que chamam de distrações. Vide as críticas feitas ao “estilo de vida” googler pelo site No 2 Google. “Esses garotos ainda não tem vida então gastam todo seu tempo no trabalho. Google provê quase tudo que essas pessoas precisam desde roupas até comida.” Na listagem de benefícios da empresa, fui conferir, a promessa é aparentemente irrecusável. “Nossos benefícios são parte de quem somos, e eles são concebidos para cuidar totalmente de você e mantê-lo saudável inclusive fisica, emocional, financeira e socialmente.” Parece familiar para você?

A grande pergunta é saber por que é tão importante que esses jovens permaneçam tanto tempo no “modo trabalho”. Porque é tão importante que não saiam até mesmo para uma simples consulta médica? Porque incorporar bichos de estimação, oferecer “cápsulas de soneca”? Ou ainda, porque é tão importante emular espaços de lazer (como clubes esportivos, oferecendo quadras de vôlei e aparelhos para exercício ergométrico). Ou cidades (!!!) como acontece na filial de São Paulo onde cada cozinha é decorada como se fosse um bairro. Porque há tanto esforço empresarial nesse sentido?

A resposta é simples, existe alguma coisa de muito perigoso na separação da vida pessoal e da vida no trabalho. Pessoalmente acredito que é a mesma coisa que fez Abdias do Nascimento dizer que “teve muita “madame” que se aborreceu com o Teatro Experimental do Negro: nós estávamos botando minhocas nas cabeças de suas empregadas.” Esse ingrediente X é o que chamo de urbanidade – o contato com pessoas, com tudo aquilo que é do âmbito público e sobretudo com tudo aquilo que é resultado da interação dessas duas variantes. E isso inclui educação, política e direitos trabalhistas.

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TRABALHO DOMÉSTICO ESCRAVO

Olha um exemplo desse perigo. Foi justamente indo pra rua que presidenta da Federação Nacional das Domésticas (Fenatrad), Creuza Oliveira, iniciou sua trajetória no sindicato. E é justamente ela quem citarei – “Nós, mulheres, passamos de escravas que trabalhavam na casa-grande para criadas, hoje nos chamam de empregadas domésticas. Nós lutamos para sermos reconhecidas como classe de trabalho, ou seja, trabalhadoras domésticas ou trabalhadoras em residência. Formamos uma das maiores categorias de mão-de-obra
feminina.”

Parece muito simples, colocado dessa forma, perceber que 1) o emprego doméstico no Brasil descende do trabalho doméstico escravo (já tinha ouvido falar nesses termos?) e ainda é completamente contaminado por estruturas escravocratas; 2) que o entendimento e o enfretamento das condições desumanas que caracterizam o trabalho dessas de operárias são uma causa essencialmente feminista. Precisa de números? A esmagadora maioria trabalhando na categoria é mulher, 62% são pardas ou negras e apenas 30% têm carteira assinada segundo a Fenatrad. Essa é uma questão clássica de gênero, de classe e de raça.

O quarto de empregada existe para que sua disponibilidade seja imediata. Ela (e seus filhos) podem servir inclusive como controle remoto (a pessoa afirma isso num documentário, confessa que já foi legal a PEC das domésticas não ter existido e a cara nem treme, como diria minha avó). Existe também um componente preocupante, a afetividade. O bebê branco é como se fosse da família. Porém isso não é sobre sentimento, é sobre pagamento de hora extra e jornada de trabalho de 44 horas semanais. Quem é da família não tem hora para chegar e ir embora, quem é funcionária sim.

É por isso não nos interessa como feministas e mulheres negras (e tantas vezes trabalhadoras domésticas) ouvir essa coisa de ser família. Pra nós não é incomum que a frase seja usada como armadilha para adocicar o cotidiano e as agruras do trabalho. É a desculpa usada para que aceitem, muitas vezes, receber menos e trabalhar muito mais. Que façam tarefas que não lhes compete, não foram previstas no contrato inicial. Para que permaneçam emocionalmente sequestradas, dóceis e assim não deixem as patroas e suas famílias “na mão”.

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E O KIKO? #FEMINISMO

Antes que digam que estou incorrendo em perseguição por dizer patroas, explico – fui corrigida por ninguém menos que a própria Creuza Oliveira a respeito desse detalhe. Disse “o contratante” e ela me corrigou com “a contratante”. Na sociedade machista, racista e classista, a vida doméstica é seara das mulheres e não dos homens. São as mulheres que contratam sim. Não são as únicas que se beneficiam claro, mas são elas que fecham os acordos de trabalho. Acredito que em sua maioria essa contratante também é branca.

Como feministas precisamos entender que ser da família é perder direitos. A proximidade quase sempre implica em agressões escamoteadas de carinho. Significa ter de fazer aquilo que compete aos filhos ou aos profissionais da geriatria, no caso de uma patroa idosa. Significa que seus corpos serão ainda mais apetecíveis aos olhos do patrão, uma vez que ela não goza do status de funcionária. Significa muitas vezes se dedicar aos filhos dos outros em detrimento dos seus. Significa tantas ficar em casa para que outra possa trabalhar, estudar, escrever e fazer filmes. Significa que você patroa branca, nunca estará (ou nunca esteve) do nosso lado de cá.

Dizer que ela é da família significa desconhecer o nome de Laudelina de Campos Melo, os mais de 80 anos de luta das operárias domésticas. É menosprezar os 350 anos de escravidão que contaminaram indelevelmente o traballho doméstico e a alma da mulher preta e dos seus. Quem sabe tudo isso junto. Quem sabe a explicação mais plausível seja a tácita aliança entre machismo, racismo e classismo, muito mais naturalizados (e internalizados) do que se possa imaginar ou admitir. Repito, isso não é sobre afetividade.

É por isso que, como mulher negra e feminista periférica, abomino esse discurso com todas as minhas forças.” Ela é da família” não é afeto, é navalha na carne. Trabalhadoras domesticas precisam de salários justos, condições de trabalho digno, reconhecimento e direito à urbanidade. É preciso deixar de lado o discursos dos favores, dos presentes e dos afetos. Ouso dizer que o trabalho doméstico, tal como é ou como querem alguns, é conceitualmente incompatível com o feminismo. É preciso que nós ajudemos a mudá-lo, fazê-lo realmente digno e justo.

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