Quando chegamos a uma determinada fase da vida, a memória fica mais forte em lembranças antigas do que fatos recentes. Não sei se é a repercussão do caso de Rafael Braga ou por lembrar dos números sobre a morte de jovens negros no Brasil, mas ultimamente sempre me vem à mente o período de 12, 14 ,16 e 17 anos de idade. Na época que eu vivia em São Mateus, bairro periférico da capital paulistana, região de altos índices de violência em números que persistem por lá até hoje.
Por Mauricio Pestana,
O famoso, “mão na cabeça aí vagabundo!” da primeira batida policial não dá para esquecer, assim como os minutos (poucos ou muitos) em que se tem uma arma mirada para a cabeça com 11 ou 12 anos de idade. Esses minutos te marcarão para sempre, principalmente quando cruzar com uma viatura da polícia no seu caminho.
Catador de papel, ex-morador de rua e atual morador da favela da Vila Cruzeiro, negro, pobre. A justiça seletiva que condenou Rafael me lembra outros fatos de adolescente em São Mateus, divisa com o ABC paulista e local de grandes protestos de metalúrgicos do final dos anos de 1970 que desafiaram a ditadura militar. Eram manifestações reprimidas também pelo tal “esquadrão da morte” – polícia política do Regime que tinha naquele bairro um dos locais de sua “desova”. Então, outro fato comum no caminho da escola, quando eu ainda cursava o primário, era cruzar com corpos atirados no chão, que o povo dizia serem vítimas do esquadrão.
Quando recordo este período, lembro-me de muitos amigos quase crianças que não ultrapassaram essa fase da dupla jornada de estudo e trabalho para ajudar em casa, dos que também optaram por um sonho de riqueza fácil e uma vida curta, dos que o álcool e outras drogas, potencializado pela falta de perspectiva os levou, dos que desapareceram e continuam desaparecendo todos os dias deixando milhares de mães, irmãos, amigos na dor e desespero.
Todas estas memórias me remetem à condenação de Rafael, que nunca teve chances perante esse sistema racista. Condenado a 11 anos de prisão por portar uma sacola contendo maconha, cocaína e um foguete. Uma testemunha confirmou que ele não carregava sacola alguma quando foi abordado, enquanto os mesmo policiais apresentaram versões diferentes dos fatos nos depoimentos na delegacia e em juízo. Entre a palavra de um negro com testemunha e a versão dos policiais, o juiz determinou o futuro de Rafael por seu maior crime: ser negro.
Entre os meus amigos da adolescência, os corpos encontrados pelo caminho da escola e Rafael, o fato em comum são a cor da pele e a falta de oportunidades, vítimas de décadas de abandono do Estado brasileiro. Quantas vidas e futuros ainda perderemos para eles?
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Jornalista, publicitário, cartunista e escritor. Exerceu o cargo de Secretário de Promoção da Igualdade Racial da Cidade de São Paulo de abril de 2013 a dezembro de 2016. Atualmente faz parte do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá de equidade racial e é Diretor executivo da Revista Raça.
Fonte: Geledes, Revista Raça.