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sábado, 20 de agosto de 2016

"Cala-te : quem reage, dança"

Crédito: Friedemann Vogel/Getty Image

por *Edson Lopes Cardoso,
Ginástica mental. Uma operação complicada para o jovem ginasta: a aceitação pragmática da negação desumanizadora. Ângelo tinha que pensar, numa fração de segundo, que o filho do treinador (Marcos Goto) era parte do grupo e que sua carreira muito provavelmente dependia da reação à agressão racista. Quem reage, recebe o que Aranha, ex-goleiro do Santos, recebeu, todos sabem.

De um lado, o corpo negro do ginasta, de outro os sacos de lixo. Ou melhor, de um lado os corpos brancos dos ginastas, divertindo-se, e de outro o saco de lixo, Ângelo Assumpção.

Lixo, lixão, corpos negros, sacos de lixo – você não precisa estar ligado na CPI do extermínio de jovens negros para perceber que o corpo de Ângelo Assumpção acaba de ser lançado simbolicamente na vala, no lixão.

A ligação simbólica, nós aprendemos, se apoia na estrutura do real. As imagens e os símbolos da rejeição se interpenetram, cruzam-se e precisamos estar atentos aos significados do simbolismo que envolve a comparação feita pelos atletas da seleção brasileira de ginástica. Lugar de negro, principalmente na faixa etária de Ângelo Assumpção, é no lixão. Risos?

A mãe de Ângelo parece que falou alguma coisa. Ângelo não vai falar. Pelo menos, não o que nos interessa. Artur Nory, Felipe Arakawa e Henrique Flores já se desculparam pela “brincadeira”. Na dita brincadeira, os ginastas brancos reafirmaram sua superioridade diante de Ângelo e deixaram claro, também, através da linguagem e das atitudes, que Ângelo representa outro grupo, o do lixo. Procura sua turma, cai fora.

Entre nós é profunda a crença de que a discussão aberta e explícita do racismo deve ser evitada. Constrange e parece não promover avanços nem instituir novas práticas. O fato é que temos, de um lado, a “maldição da cor” e, de outro, temos esforços bem sucedidos para interditar o debate sobre racismo. Na rádio CBN, o bate-papo sobre racismo na seleção brasileira de ginástica olímpica (21.05.2015, programa “Hora de expediente”) levou um pouco mais de dois minutos e camuflou a palavra maldita.

Dan Stulbach referiu-se uma vez ao termo na expressão “...quanto está naturalizado este tipo de racismo na sociedade brasileira, tratado como brincadeira”. Naturalização nesse contexto significa que eventuais penas devem ser atenuadas. O racismo é apresentado como elemento da vida cotidiana – mas para inocentar as pessoas que discriminam. As práticas discriminatórias não seriam percebidas como violência extrema, porque passariam longe da consciência dos autores, pobres vítimas inocentes da “naturalização”. Há cinismo e astúcia na manobra.

No país que fuzila jovens negros sem piedade, as considerações de jornalistas sobre atos de discriminação racial e incitamento ao racismo praticados por jovens brancos (“meninos”, “rapazes”) valorizam a chamada pena “didática”, que seja “um exemplo para que não se repita mais”. Os rapazes vão ficar sem a merenda durante trinta dias.

E Ângelo Assumpção? Milton Jung da CBN disse que “muitas vezes o alvo das críticas acaba não reclamando, porque o fato de ele reclamar ou reagir contrariamente pode gerar uma exclusão daquele ambiente, e quando naquele ambiente a oportunidade que o esporte oferece é a de uma ascensão, etc., de um sonho que você realiza, e você acaba aceitando isso, não reagindo da maneira como você deveria talvez. Mas realmente é muito complexo esse processo”.
Que “ambiente” esse, francamente. Releiam o que disse o Jung: críticas. Ângelo teria sido alvo de “críticas”. Na hipótese de reação, o tal “ambiente” fatalmente o excluirá. O que é exatamente complexo no processo? Que Ângelo não possa suportar a grande pressão do ambiente racista? A desumanização, a coisificação, a negação de suas possibilidades como atleta? O desafio gigantesco de alcançar êxito, numa sociedade cujos processos de dominação destinam-se a negar, manipular, conter e reprimir seu corpo?

Os atletas brancos foram punidos “didaticamente”. O modo como se divertem, o comportamento do grupo, comunica mais que indícios de que se sentem seguros de que compartilham valores e práticas: “outros pensam e agem como nós”.

Uma resistência furiosa com a divulgação do episódio, profundamente contrariada, produz o silêncio e a imobilidade. Os personagens foram todos blindados, o noticiário se esvaziou rapidamente. Silêncio, silêncio, silêncio. Ângelo Assumpção, não sei não, pode estar encerrando uma promissora carreira.
 
 
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*Edson Lopes Cardoso
Jornalista e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo

Fonte: Bradonegro.

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