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sábado, 17 de setembro de 2016

Quem viu Daiane chorar? Racismo e o adoecimento psíquico

 
por Emanuelle Goes,

“A minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro”
Conceição Evaristo .

Falamos pouco sobre a saúde e o adoecimento psíquico da população negra, falamos pouco das dores negras causada pelo racismo cotidianamente. Motivada pela campanha de prevenção do suicídio e aguardo o momento certo para abordar o tema, vou aqui tentar falar um pouco sobre o assunto, e destacando o suicídio como última fronteira causado pelo racismo e pelo seu enfrentamento, que nos mata todos os dias aos poucos ou nos leva de uma vez.

“Quando uma pessoa pensa em suicídio, ela quer matar a dor, mas nunca a vida” quando li esta frase pensei sobre a dor, este sintoma que é tão complexo de ser medido, avaliado e tratado, e como se imagina que os negros toleram mais as dores físicas e por isso não precisam de analgesia (medicamento para dor), neste sentido é impossível conceber a dor da alma de uma pessoa negra, pois disseram também que negras/os não tem alma. (DOR – Experiência sensitiva e emocional desagradável associada ou relacionada a lesão real ou potencial dos tecidos. – SBED).

Torna-se negra é saber que todo dia vamos levantar e lutar contra o racismo e que ele sofre mutações mas não cessa, é saber que vão nos colocar em situação limite todos os dias e que esta dor pode chegar a qualquer momento.

Segundo Neusa Santos em seu livro Torna-se Negro “Saber-se negra é uma experiência de ter sido violada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências e compelidas a expectativas alienadas, mas é principalmente a experiência do compromisso do resgate da história e a recriação de suas potencialidades”. É tudo junto mesmo, a afirmação da identidade como um lugar de alimento e o reconhecimento do racismo como a barreira para o alcance da dignidade da pessoa humana.

No título falo de Daiane, e quem foi Daiane? Jovem negra de 23 anos que estudava Engenharia na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, ela cometeu suicídio no dia 14 de maio em sua residência, para os colegas o racismo violento vivido nas Universidades tem causado adoecimentos e tentativas de suicídios como foi o caso de Daiane.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, a taxa mundial de suicídio é de 11,4 por 100 mil habitantes (15,0 para homens e 8,0 para mulheres) e no Brasil, o índice de suicídios na faixa dos 15 a 29 anos é de 6,9 casos para cada 100 mil (índice de mulheres é de 2,6 e de homens 10,7. Mas entre 2010 e 2012 um números de suicídio entre a população feminina aumentam em 18%).

Sobre a população negra temos poucas informações, mas os dados sobre suicídio tanto os homens negros (7,6/100 mil) como os brancos (9,5/100mil) apresentam maior taxa de mortalidade por este grupo de causa, e entre mulheres são as mulheres brancas (2,5 100 mil; negras 1,7/100 mil) a maior taxa. Vale destacar que o população negra tem a sua taxa de homicídio elevadíssima sendo a principal causa de morte em relação a causas externas.


Sobre acesso da população negra a serviços de saúde mental, a Pesquisa Nacional de Saúde realizada em 2013 pelo IBGE, revela que em relação à idade do primeiro diagnostico para depressão as mulheres pretas tem sido diagnosticada mais tardiamente quando comparada as mulheres brancas e pardas (Figura).

A fortaleza do corpo negro desumaniza todas as pessoas, sempre quando ouvimos que somos guerreiras, somos fortes e resistentes na luta, estão nos dizendo que não podemos chorar e nem adoecer e muito menos recuar para não sofrer, “engula o choro” quem de nós não ouviu isso? e siga. Daiane engoliu o choro, mas a alma não suportou a dor. Acredito que o suicídio é a dor visceral da alma.

É na categoria da afetividade “que muitas vitórias racistas se acumulam, afetando nossa saúde psicológica por nos fazer carregar repetidas frustrações e aceitar reproduções de relacionamentos abusivos. Tudo isso em silêncio, como se não existisse um problema estrutural.” Stephanie Ribeiro
 
“A escravidão condicionou os negros a conter e reprimir muitos de seus sentimentos” bell hooks. A marca da escravidão em nossos corpos e almas, ainda presente nos dias de hoje, pelas práticas racistas fincadas com referência deste sistema, assim como a nossa memória ancestral que não nos deixar esquecer, o que pode ser chamado de Embodiment (termo utilizado na Epidemiologia Social) que descreve o nosso corpo como histórico, legado ancestral atravessa os tempos e corporifica em nós o legado, por isso que não esquecemos que somos beleza, temos historias e herdemos coroas de reis e rainhas africanas. Vivemos na dicotomia das coisas como nos disse Neusa Santos. 
 
Me abrigo nos braços de minha irmã – Para nós, por nós e entre nós

“O amor precisa estar presente na vida de todas as mulheres negras, em todas as nossas casas. É a falta de amor que tem criado tantas dificuldades em nossas vidas, na garantia da nossa sobrevivência. Quando nos amamos, desejamos viver plenamente.”  Bell Hooks.

Nos braços de minha irmã (sister) eu me curo, no colo das Iabás eu me curo, o amor que cura. Se a luta é coletiva, a dor, o amor e a cura também são, a irmandade cura a dor da alma e nos salva do assassinato lento e letal do racismo. Não estamos sós.

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Emanuelle Goes

*Blogueira, Enfermeira, Coordenadora do Programa de Saúde das Mulheres Negras – Odara Instituto da Mulher Negra, Doutoranda em Saúde Pública (ISC/UFBA).
 

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